A glória de fazer um festival em Vila do Conde
Para festejar o 25.º aniversário, o Curtas Vila do Conde convidou 25 figuras para escolherem 25 curtas-metragens exibidas pelo festival ao longo da sua história. O PÚBLICO inverteu o desafio – e pediu aos seis directores que deram a cara pelo Curtas desde 1993 para escolherem o seu momento marcante.
Dario Oliveira
Director do Curtas Vila do Conde de 1993 a 2013, hoje director do Porto/Post/Doc
“Destaco sem hesitar o primeiro encontro com o Thom Andersen. Horas de conversas que deram resultados gratificantes. Sou um seguidor e fã do seu percurso desde a descoberta do seminal Los Angeles Plays Itself numa sessão dum longínquo DocLisboa. Já no Curtas, muito depois, em 2011, propus ao Thom fazermos um filme sobre a arquitectura modernista na cidade do Porto, inspirado pela sua afinidade com as cidades, alguns arquitectos modernistas e a cultura pop. Fazer um filme longe da sua querida Los Angeles e com uma equipa de estudantes de cinema portugueses seria o projecto a levar a cabo já em 2012. Tranquilamente visitou a cidade e 24 horas depois trocou a minha proposta por um nome: Eduardo Souto de Moura. Primeiro fiquei surpreendido, mas rapidamente acedi ao seu amor crescente pelo trabalho do arquitecto. Em condições difíceis e com um pequeno orçamento, nasceu Reconversão [Curtas 2012] que o New York Times considerou em 2013 como um dos grandes filmes de arquitectura da história do cinema. Está aí, ainda a viajar em festivais, em DVD, e para memória futura."
Luís Urbano
Director do Curtas Vila do Conde de 1993 a 2005, hoje produtor cinematográfico
“Houve um momento em que fomos levados a fazer uma reflexão sobre aquilo que era o festival, e aquilo que andávamos a fazer; foi também o momento que atirou a bola para a frente, para outra dimensão: o décimo aniversário do festival, em 2002. Foi o ano em que fizemos uma colecção de curtas com o Miguel [Gomes, Kalkitos], o Sandro [Aguilar, Remains], Daniele Cipri e Franco Maresco [Dieci Minuti alla Fine] e Matthias Müller e Christoph Girardet [Beacon], e o livro dos dez anos. Revisitados nos dias de hoje, acho que estes quatro filmes são transversais ao tipo de linguagens que queríamos sintetizar e explorar no futuro. Foi o momento que nos obrigou a fazer um esforço para lá das rotinas de preparar cada edição. O programa desse ano foi o lançamento daquilo que queríamos fazer. Percebemos que o festival poderia ter um futuro.”
Mário Micaelo
Director do Curtas Vila do Conde desde 1993
“Não me encaixo muito nas efemérides, porque todos os anos do festival acabam por ser um aniversário, uma festa que é o corolário de um ano de trabalho ou mais. Mas um projecto extremamente gratificante, e para mim um momento de viragem, foi a aventura da produção do filme do Bill Morrison com música original dos Lambchop, The Dockworker’s Dream [Curtas 2015). Foi um projecto sacado a ferros, muito complexo, ao mesmo tempo musical e visual, que pega numa ideia que nos apraz, fazer das imagens de museu motivação e material de base para construir novos filmes. O filme consegue alcançar uma narrativa poética, que tem a ver com a nossa portugalidade, saída do modo sensível com que o Bill Morrison olhou para as nossas imagens, apercebendo-se da nossa identidade, de estarmos virados para o mar, pensarmos na viagem, irmos para o lado de lá e encantarmo-nos com coisas maravilhosas. Tudo se encaixou como se o cosmos tivesse olhado por nós, e o filme tem viajado pelos festivais de cinema, tem ganho prémios, é usado como promo do novo álbum dos Lambchop e hoje podemos ir à Internet vê-lo... É daqueles trabalhos que dão uma satisfação tão grande que faz com que continuemos a acreditar nas nossas ideias, nos nossos projectos. Foi uma aventura fabulosa que é impossível acontecer todos os anos.”
Miguel Dias
Director do Curtas Vila do Conde desde 1993
“De todas as retrospectivas de autores da história do Curtas, uma das que considero mais relevantes como verdadeiro momento de espanto, estranheza e descoberta foi a retrospectiva da dupla siciliana Daniele Cipri e Franco Maresco [Curtas 2001]. No conjunto dos filmes apresentados, há um que guardo na memória: o documentário Enzo, Domani à Palermo, retrato do super-agente de figurantes e organizzatore de rodagens Enzo Castagna, cargos que acumula com uma agência funerária e ainda com a organização das festas em honra da padroeira da cidade, Santa Cecília – que gere a partir da sua prisão domiciliária. Esta escolha está ainda ligada a algumas peripécias curiosas, como a viagem que fiz com o Dario à Sicília, mistura de férias com o vago pretexto de entrevistar Maresco para o catálogo do Curtas. Refira-se a doença repentina de Maresco no dia da projecção, impedindo-o de apresentar o filme perante uma plateia que encheu essa sessão de encerramento. Por precaução ficou internado uma noite num hospital em Matosinhos, e a primeira coisa que quis saber quando o fui buscar de manhã foi se houve muitas gargalhadas dos espectadores. 'Naturalmente hanno riso molto, Franco!'”
Nuno Rodrigues
Director do Curtas Vila do Conde desde 1993
“Um filme marcante é o Film Ist? do Gustav Deutsch [Curtas 1999], porque reuniu um conjunto de elementos essenciais e determinantes na criação, mais tarde, da secção experimental e da [galeria] Solar. E há uma outra história, mais recente, a que eu chamaria 'A Glória de Fazer Cinema em Vila do Conde', a brincar com o título do filme do Manuel Mozos [A Glória de Fazer Cinema em Portugal, Curtas 2015]. É a história fantástica de um lugar, uma cidade, onde imaginámos este festival. O Manoel de Oliveira, a quem dedicámos a primeira edição do Curtas, tinha feito os únicos dois filmes rodados em Vila do Conde, As Pinturas do Meu Irmão Júlio e Romance de Vila do Conde [ambos de 1965]. E tudo aquilo que construímos foi dar a um conjunto de filmes rodados na própria cidade, o que era algo de impensável há 25 anos – a par do filme do Manuel, o Miguel Clara Vasconcelos [Vila do Conde Espraiada], o Gonçalo Tocha [A Mãe e o Mar], o João Canijo [Obrigação], o João Pedro Rodrigues e o João Rui Guerra da Mata [Mahjong]...”
Rui Maia
Director do Curtas Vila do Conde de 1993 a 1999, hoje comissário de bordo
“Rebobinando a memória, fatalmente recaio no marco que pessoalmente foi a minha pré-história do festival. A Voz Humana, de Roberto Rossellini e com Anna Magnani, a partir da peça de Jean Cocteau, integrando o filme por sketches O Amor, de 1948. É um dos filmes de que mais gosto, é uma curta-metragem e só podia ser uma curta-metragem: aqui é o momentum e o seu requiem. Nada mais e transborda-se. No momento em que o vi, na TV, no dobrar da década de 1980 para 1990, acordei definitivamente para a noção da especificidade e do valor em si da curta-metragem, fora do estereótipo de 'formato' para o jovem candidato a cineasta exercitar, qual aprendizagem ou prova de capacidade, antes de uma carreira nas longas-metragens. Foi o momento subterrâneo e definitivo de a curta-metragem conquistar um entusiasta, em que ganhei o alento para vir a ter imensa trabalheira na criação e direcção do festival, até ao fim da sétima edição (1999) e no lançamento da Agência da Curta-Metragem no mesmo ano. A Voz Humana é também um saudoso exemplar absoluto do primado de alicerces em desuso: a consistência e o substrato do argumento e do protagonista (a interpretação de Anna Magnani…). Aqui não há artifício para as grandes paixões descartáveis e dadas ao esquecimento. Para mim e para o que eu fui na história do Curtas, esta é 'a' curta-metragem.”