A Geração Curtas continua viva
O Curtas Vila do Conde comemora a sua 25.ª edição. E com ele o país comemora também o cinema que este festival ajudou a impulsionar. Passados 24 anos, parece claro que o Curtas foi uma das peças na “tempestade perfeita” que pôs a produção nacional a jogar (e às vezes a ganhar) noutro campeonato.
Faz agora 24 anos, em Junho de 1993, o Festival Internacional de Curtas-Metragens de Vila do Conde tinha a sua primeira edição, por obra e graça de meia-dúzia de carolas locais reunidos sob a égide do Cine-Clube de Vila do Conde. Eis-nos entretanto em Julho de 2017, mês em que o Curtas — como entretanto ficou conhecido — entra na sua festiva 25.ª edição, já a partir deste sábado, ainda com muitos dos mesmos carolas de então (e toda uma nova geração de carolas) mas agora sob uma estrutura profissionalizada (a cooperativa de produção cultural Curtas Metragens) e com um estatuto completamente diferente.
Entre 1993 e 2017, o Curtas tornou-se num dos mais importantes festivais europeus do formato, simultaneamente acessível e vanguardista, capaz de fazer coexistir Tsai Ming-Liang e Jean Rouch, Apichatpong Weerasethakul e Jacques Tati, Gus van Sant e Kenneth Anger, atraindo ao longo dos últimos dez anos uma média de 18.500 espectadores por edição. E, no mesmo movimento, permitiu a revelação de uma série de autores portugueses que partiram à conquista do mundo. Uma geração que encontrou uma “identidade” na designação do crítico e programador Augusto M. Seabra numa coluna de 1999 nas páginas do PÚBLICO – a “Geração Curtas”, colectivo amorfo onde pontuavam Miguel Gomes, Sandro Aguilar, Pedro Caldas ou João Pedro Rodrigues, autores que não gostavam por aí além da generalização mas estavam reunidos pela circunstância inescapável de serem contemporâneos.
“Visto agora, isso da 'Geração Curtas' parece uma invenção.” Pedro Caldas (n. 1958), que venceu por duas vezes a competição nacional de Vila do Conde (com O Pedido de Emprego, em 2000, e Europa 2007, em 2007), está ao telefone, mas o sorriso quase se adivinha. “A maior parte [dos realizadores] tinha de facto a Escola de Cinema em comum. Mas vínhamos de anos tão diferentes e de professores tão diferentes e fazíamos filmes tão diferentes! Não havia um projecto estético comum, nem propriamente uma estratégia. E o objectivo não era fazer curtas: era passar pelas curtas para fazer longas.” Sandro Aguilar (n. 1973), montador, realizador e produtor, vencedor do concurso nacional em 2001 com Corpo e Meio, confirma: “Éramos autores mais ou menos autónomos. Aconteceu que houve um concurso de circunstâncias que permitiu olharmos para a curta de uma mesma forma – como território de experimentação, de afirmação de um universo pessoal. Mas tínhamos todos universos próprios.”
A tempestade perfeita
O Curtas Vila do Conde, sobretudo a partir do arranque da competição nacional (ao terceiro ano do festival, em 1995), foi peça fulcral nesse concurso de circunstâncias. Aguilar: “Até então a curta-metragem não tinha grande expressão. Não havia nenhum sítio onde mostrá-la condignamente. Para serem mostrados em sala, os filmes tinham de ser em 35mm; havia toda uma logística muito mais complicada. Qualquer realizador com ambição tinha de se atirar rapidamente à longa, ou então de penar longos anos como assistente até ter oportunidade de fazer um filme. Nós não. Tínhamos em comum olhar para a curta-metragem como um atalho para fazer um filme. E o Curtas era uma janela de distribuição para esses filmes, um sítio onde podiam ser mostrados, onde o formato era tratado como cinema e não como uma coisa menor, subalterna.”
Os concursos de apoio à curta-metragem que o ICAM (antecessor do ICA) iniciara em 1991 provaram ser outra circunstância importante, como diz Luís Urbano (n. 1968), um dos “carolas” que organizou o Curtas até se tornar, em 2005, produtor na O Som e a Fúria (formada por Sandro Aguilar e João Figueiras em 1998, hoje “casa” regular de Miguel Gomes, João Nicolau, Manuel Mozos, Salomé Lamas ou Ivo Ferreira). “Os programas de apoio à produção de curtas-metragens, que antes não existiam, trouxeram a possibilidade de entrada no sistema de financiamento, uma oportunidade de criar estruturas, de fazer primeiros filmes.”
Esse período da passagem dos anos 1990 para a década de 2000 foi uma “tempestade perfeita”: coincidiram no tempo e no espaço uma produção activa, cineastas com sangue na guelra, um festival aberto às experiências. O Curtas tornou-se numa “montra” que falava não apenas para o interior mas também para o exterior, como recorda Urbano: “O festival chamava muita gente de fora, pela programação mas também por aquela perspectiva mais exótica de permitir descobrir outro cinema português, para lá do Manoel de Oliveira ou do João César Monteiro.” Pedro Caldas fala do Curtas como “trampolim”, sobretudo para as curtas vencedoras, e recorda a presença regular de programadores internacionais – é, aliás, a partir desse interesse crescente que arranca, em 1999, a Agência da Curta-Metragem, estrutura paralela exclusivamente dedicada à gestão internacional de direitos e à divulgação da produção portuguesa de curtas. “Havia produtoras que se criavam apenas para produzir um filme,” relembra Urbano, mas havia também “ilhas” de produção que iam surgindo e desaparecendo – Sandro Aguilar lembra os Artistas Unidos de Jorge Silva Melo, que se recentraram no teatro, e as Produções Off da falecida Rosi Burguette, que também encabeçou o programa de produção Plano Geral.
O elogio do artesanato
Mas o Curtas não se limitou a constituir uma simples “plataforma de lançamento” de títulos; de algum modo, o festival tornou-se também um “motor de produção”. As palavras são do realizador e produtor Rodrigo Areias (n. 1978), vencedor do concurso nacional em 2008 com Corrente e parte de uma “segunda vaga” que vem “agarrar” o testemunho já em pleno século XXI: "Sabíamos que havia onde mostrar os filmes e que havia pessoas interessadas.” A produtora que formou na sua Guimarães natal em 2009, Bando à Parte (Edgar Pêra, Jorge Quintela, Paulo Furtado, André Gil Mata, Paulo Abreu), talvez não existisse sem o Curtas: “Numa fase inicial, o festival foi mesmo muito importante para aquilo que a Bando à Parte é hoje: há todo um processo de crescimento, de estímulo e de provocação que tem a ver com o espaço de abertura a experiências que o festival sempre teve.” E quem fala da Bando à Parte fala também de outras produtoras que entretanto foram surgindo e, com maior ou menor regularidade, têm continuado a apostar (como o colectivo Terratreme ou Uma Pedra no Sapato).
Mas há outra dimensão que todos os cineastas partilhavam, e é Luís Urbano, que começou por assistir “de fora” a essa emergência, que a define: eram realizadores que estavam a “matar o pai”. “No sentido em que os seus filmes não cumprem uma tradição ou uma herança. O Miguel Gomes ou o João Pedro Rodrigues surgem com uma linguagem que é deles; o único respeito que têm pela tradição é o gesto da liberdade, da recusa do formato, da recusa de 'estandardizar' o filme para que ele se pareça com muitos outros.” Um “elogio do artesanato” que se tem mantido como marca registada do cinema que se faz em Portugal, curto ou longo, e que é cada vez mais reconhecido internacionalmente (basta ver como, só desde o início do ano, Diogo Costa Amarante, Ico Costa, João Pedro Rodrigues, Pedro Pinho e Teresa Villaverde foram premiados lá fora).
João Nicolau (n. 1975), que começou pela montagem e cujas duas primeiras curtas (Rapace, em 2006, e Canção de Amor e Saúde, em 2009) saíram premiadas do Curtas, pertence à “vaga” seguinte de cineastas e fala precisamente desse “exemplo de liberdade artística, de gosto e desafio pelo risco” que a “Geração Curtas” passou a quem veio a seguir. “A geração de realizadores [meus contemporâneos] é feita de vozes ou de percursos individuais, que nem sequer já se põem essa questão. Chegámos numa altura mais livre, enquanto a geração anterior ainda teve de dinamitar certas coisas. Se eu tivesse começado a trabalhar em cinema dez anos antes não teria encontrado as possibilidades que já estavam lá quando me pus a fazer filmes...”
O tempo (não) volta para trás
Se houve algo que o Curtas veio de facto desfazer, foi a noção da curta como “patamar” para chegar à longa. Da “geração original”, Sandro Aguilar e Pedro Caldas têm carreiras feitas quase exclusivamente nas curtas (Aguilar completou este ano a segunda longa em 20 anos, Mariphasa, e Caldas apenas assinou uma longa, Guerra Civil, que ficou refém de questões legais). Os mais importantes jovens realizadores reconhecidos ou premiados internacionalmente, como Gabriel Abrantes, João Salaviza, Carlos Conceição ou Diogo Costa Amarante, têm já filmografias significativas no formato curto, e só Salaviza passou já à longa com Montanha. Trata-se, para Aguilar, de “uma maneira de olhar para o cinema com qualquer coisa de idiossincrático, de personalizado, não se trata de fazer filmes de rotina”. João Nicolau vê como “sinal de uma certa saúde não se pensar na curta como uma pré-licenciatura”. Rodrigo Areias: “No meu caso pessoal, vou fazendo filmes aos pares. Normalmente faço uma curta e uma longa e há sempre nas longas coisas da curta anterior… Tem a ver com um processo de pesquisa contínuo que me interessa enquanto realizador; a necessidade de um autor se exprimir. Nem tudo tem de ser um romance – algumas coisas podem ser um soneto, um conto ou um haiku.”
Vinte e quatro anos depois, então, a produção portuguesa enfrenta dificuldades que não precisam de ser recordadas; a Internet veio mudar significativamente o modo como o cinema é divulgado e exibido. E o Curtas já não está sozinho em Portugal, com o IndieLisboa em particular a apostar em força na competição de curtas. Se o vencedor do Urso de Ouro em Berlim 2017, Cidade Pequena, de Diogo Costa Amarante, se tinha estreado no Curtas de 2016, a verdade é que o festival está também agora em competição com os principais certames internacionais (na selecção portuguesa deste Curtas Vila do Conde 2017, cinco filmes vêm das competições de Cannes e de Berlim). Não se trata de minimizar a relevância continuada do Curtas – Sandro Aguilar fala de um festival que se “manteve fiel a um determinado princípio, embora tenha sabido modernizar-se e ampliar o seu âmbito de acção, continuando a olhar com carinho e com um sentido de pesquisa e de risco para o que se faz”. Trata-se de reconhecer que o estatuto do Curtas, hoje, vem também em grande parte da tal “tempestade perfeita” – que, pela sua própria natureza, não é algo que se repita a pedido.
“O tempo da 'Geração Curtas' já não vai acontecer outra vez”, diz Luís Urbano, sublinhando a circunstancialidade desse momento. Mas Sandro Aguilar é mais optimista: “A Cinemateca acabou agora de fazer um ciclo de novos cineastas, e novos cineastas hão-de emergir sempre. Acontece, apenas, que vão construir os seus universos com um nível de autonomia diferente, inclusivamente no que diz respeito aos festivais.” Pedro Caldas não tem sequer resposta: “O cinema mudou muito, e o suporte digital modificou de tal maneira a relação que as pessoas têm com um filme que não sei ao certo o que virá a seguir.” Rodrigo Areias é o mais positivo, apontando a existência de uma “terceira vaga” da “Geração Curtas”, “bem mais forte do que as duas anteriores": "Basta ver a premiação internacional da curta-metragem [os Ursos de Ouro em Berlim para João Salaviza, Leonor Teles e Diogo Costa Amarante]. E o Salaviza ou o Gabriel Abrantes já estão noutro campeonato. Acho que já se consegue pressentir a vaga que virá a seguir, e ainda bem.”
Inegável é que o Curtas Vila do Conde continua a ter um papel nesse futuro. Quem o garante é João Nicolau. “Um dos maiores prazeres que tive no Curtas foi descobrir um grupo de pessoas com a mesma vontade de agir sobre o cinema, de fazer coisas não com uma preocupação programática mas segundo uma lógica do princípio do prazer.” E isso, 25 anos depois, mantém-se intacto.