O evangelho rock'n'roll segundo os The Make-Up e os Royal Trux
Surgiram das margens para deixarem marca. Nos anos 1990, o Gospel Yeh-Yeh dos The Make-Up e o rock'n'roll como palco de excessos dos Royal Trux ofereceram-nos duas das aventuras mais proveitosas da década. Teremos o privilégio de os reecontrar no Nos Primavera Sound
Não nasceram na mesma cidade, não nasceram com propósitos semelhantes, mas habitaram o mesmo tempo e pertencem à mesma categoria de bandas: aquelas que emergem das margens do rock’n’roll como força (potencialmente) transformadora. Uma como representação da sua liberdade total vivida no fio da navalha, num confronto feito de devoção pela sua história e de uma vontade de o esventrar para o reconstruir novamente, com os Rolling Stones em êxtase de blues e drogaria avulsa como modelo – são os Royal Trux de Neil Michael Hagerty e Jennifer Herrema, nascidos em Nova Iorque, 1987. Outra recuperando-o como arma de acção política, vestido em farda impecável de operário soul e erguendo-se ao púlpito gospel para inventar novas danças e suscitar novos despertares – são os The Make-Up liderados por Ian Svenonius, nascidos em Washington em 1995. Duas bandas desaparecidas no início dos anos 2000. Dois regressos a não perder no Nos Primavera Sound. Royal Trux entram em palco esta sexta-feira, às 19h. The Make-Up montam o concerto-comício no Sábado, às 23h30.
Há outra coisa a uni-los para além do que os separa, e para além de Neil Hagerty ter produzido In Mass Mind, o terceiro álbum dos The Make-Up, editado em 1998 – à colaboração seguiu-se uma digressão conjunta. Ambas as bandas existiram naquele momento imediatamente anterior às profundas transformações trazidas pela era da internet. Quer isto dizer que, como que escasseiam os documentos de época e a existência dos The Make-Up e dos Royal Trux, apesar do estatuto enquanto respeitadíssimas bandas de culto, surge envolta num certo manto de mistério. Só isso já geraria alguma curiosidade. Mas há o resto, o principal.
Os The-Make Up foram os arautos – e únicos praticantes – do gospel yeh-yeh. Ou seja, defendiam uma pregação rock’n’roll em que o público se tornasse também um elemento participante. A banda criada no seio do caldo contracultural do punk de Washington (haviam nascidos das cinzas dos Nation Of Ulysses, autores em 1991 de um sugestivo 13-Point Program to Destroy America), surgia em palco com Ian Svenonius como agitador das massas, dançando como James Brown enquanto repetia versos como os de Watch it with that thing - “I know my place, I know my place, I’m a slave / I know my place, I know my place, make it change”: “I’m for sale, baby, I’m for sale”, era a conclusão final; “Let me hear you say yeah”, o grito congregador quando a música se silenciava.
A banda, formada por Svenonius, o guitarrista James Canty, a baixista Michelle Mae e o baterista Steve Gamboa (substituído agora por Mark Cisneros), congregava o ataque cru do garage rock com a agilidade da soul e do funk. Eram uma glamorosa banda de combate e deixaram para a história quatro álbuns de estúdio, dois deles clássicos do seu e de qualquer tempo (In Mass Mind e o último, Save Yourself, de 1999). Em 2012, ressurgiram de forma inesperada para actuar no festival All Tomorrow’s Parties. Cinco anos depois, anunciaram a sua primeira digressão desde a reunião. Ian Svenonius, James Canty e Michelle Mae estiveram ou estão ligados a bandas como os Weird War ou os Chain & The Gang, mas a lenda construiu-se nos The Make Up. “We’re building sonic architecture, baby!”, exortavam no álbum ao vivo After Dark. É tempo apreciar a obra sónica novamente.
Os Royal Trux são toda uma outra banda. Há alguns anos, Svenonius recordou a digressão conjunta dos Make Up com Hagerty e Herrema. “Eram perversos, da mesma forma que o Dylan o é. Desafiando e desapontando as expectativas do público”, contou à Quietus. “Toda a gente se inspirou na sua imagem: White Stripes, Fiery Furnaces, The Kills, Mates of State, etc. Já para não falar da sua abordagem… A lista continua”.
Na sua primeira existência eram o casal que desconstruía em partículas o rock'n'roll. Faziam-no alegre e ferozmente, apenas para as montar de forma surpreendente, no extremo da inteligibilidade (Twin Infinitives, de 1990, é, nesse sentido, um clássico). Enquanto o furacão grunge avançava mundo fora, foram resgatados pela multinacional Virgin, que buscava neles credibilidade artística – duraram um álbum na editora, Thank you. Estouraram o dinheiro num estúdio, tornaram-se ícones do heroin chic sem o desejarem e sem qualquer esforço, e foram criando um rock’n’roll fiel à gloriosa decadência de bandas como os MC5, os Stones de Exile on Main St, os Velvet Underground – com uma óptima versão de Money for nothing, dos Dire Straits, pelo meio, só para nos confundir. Accelerator, de 1998, é álbum obrigatório.
Quando deixaram de ser um casal, deixaram de ser banda. Estiveram década e meia sem se verem, enquanto Neil Michael Hagerty editava a solo ou enquanto Howling Hex, enquanto Jennifer Herrema criava os RTX ou os Black Bananas que nos visitaram em 2014. Em 2015, chegou o convite para se reunirem para um pequeno festival em Los Angeles, o Berserktown. Foi, contam, como se nada tivesse acontecido desde que separaram. Estavam de volta. Dia 16 de Junho chegará até um novo álbum, Platinum Tips and Ice Cream, com novas versões de velhas canções. Antes disso, o concerto. Rock’n’roll! (mesmo a sério).