Sentir medo para seguir em frente

Os Swans chegam ao festival já com fim anunciado. Michael Gira está muito feliz e isso não pode ser. “Preciso de algum medo”, diz. Medo (e desconforto). Palavras para definir os Swans, palavras que assentam na perfeição aos Death Grips. Duas bandas catarse para espelhar um mundo em tumulto.

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Os Swans regressam ao Nos Primavera Sound esta sexta-feira, às 22h

O ruído do monstro perante nós é ensurdecedor. Não vale a pena escondermo-nos. Aquela massa sonora rodeia-nos e envolve-nos num abraço cada vez mais apertado. Sentimos-lhe a respiração a bafejar próxima, cada vez mais próxima. Cedem os sentidos ao ataque: aquelas luzes a piscar, pontos brancos e azuis destacando-se no fundo totalmente negro, existem realmente ou são já efeitos da alucinação?

O descrito pode ter sucedido a quem assistiu ao concerto dos Swans numa das noites do NOS Primavera Sound de 2013. Podia servir também para descrever um concerto da banda de Michael Gira, nascida entre o caldo criativo da no-wave desenvolvida em Nova Iorque na passagem para a década de 1980 e versão apocalíptica dessa erupção criativa – nessa altura, a acreditar nas lendas urbanas em volta da banda, que contam que Gira tinha por hábito exigir que desligassem o sistema de ventilação dos locais onde tocava para potenciar o impacto físico, o efeito seria mais sufocante ainda.

Há coisas que não mudam nesta banda que tanto mudou desde os tempos em que se fazia de acordes lentos, transformados em bordões de distorção, oferecidos ao público como experiência anti-zen. “É um calvário agradável”, dizia Gira ao Ípsilon em 2011.

Os Swans foram muita coisa desde que se estrearam em longa-duração com Filth, em 1984, mas a intensidade da música que criam, a sensação evocada de uma catarse transformadora, ora sublimação de uma turbulência interior, alimentada pelo insuportável peso do mundo, impossível de aplacar, ora desejo de um qualquer sentido de transcendência, mantém-se uma característica essencial. Assim foi na primeira encarnação, até ao final dos anos 1990; assim foi a partir do regresso, em 2010; assim tem sido nos álbuns e nos concertos que lhes vimos desde então.

Os Swans regressam ao Nos Primavera Sound esta sexta-feira, às 22h. Tocam no segundo dia de festival, depois da abertura, quinta-feira, com Run The Jewels, Justice, Flying Lotus ou Miguel. Tocam no mesmo dia em que veremos o muito aguardado Bon Iver apresentar em Portugal o álbum mais recente 22, A Million, em que a imprescindível Angel Olsen cantará “shut up, kiss me, hold me tight” e outras canções de My woman, álbum de destaque em 2016, em que os ingleses Sleaford Mods e os australianos King Gizzard & The Lizard Wizard continuarão a conquistar mais gente para a sua música (é o que acontece a cada novo concerto de cada uma das bandas). Os Swans no mesmo dia de Nicolas Jaar, prodígio da electrónica de vistas largas. Os Swans como um dos destaques do dia que antecede o encerramento do festival – sábado será tempo para Metronomy, Growlers, Weyes Blood, Sampha, Aphex Twin, Elza Soares ou The Make-Up.

A uma semana do concerto no Parque da Cidade, no Porto, Michael Gira confirmava ao Ípsilon aquilo que escrevemos. “Se pensarmos em alguém como Nina Simone e a imaginarmos, só piano e voz, percebemos como a música pode ser uma experiência transformadora. Eu acabei por descobrir, em meados dos anos 1980, que os ingredientes para o conseguir não têm que ser guitarras eléctricas distorcidas em volume elevado. Essa demanda pode ser feita com outros meios”. Foi essa a razão, explica, para ter posto um fim aos Swans no final dos anos 1990, criando os Angels Of Light, banda ligada a alguns nomes da então chamada “free folk”, como Devendra Banhart ou os Akron/Family. “Decidi que não voltaria a usar as ferramentas a que recorrera tantas vezes nos Swans”. Mais de uma década depois, porém, nova inflexão de rumo.

Partir para outro lugar

A meio de um concerto dos Angels of Light, enquanto o ritmo se tornava transe minimal e os acordes se erguiam em espiral sobre ele, percebeu que os Swans, afinal, não tinham morrido. Estávamos em 2010 e esta banda única – de que outra forma poderia ser referência para o rock industrial, o gótico, o noise, o pós-rock e outros géneros com e sem prefixo ou sufixo rock? -, liderada por um homem que habita o mesmo universo assombrado do contemporâneo Nick Cave e que ergue voz e braços aos céus, ameaçando-os ou em busca de uma qualquer redenção, como o pregador David Eugene Edwards, dos 16 Horsepower e dos Wovenhand, regressava para não mais desaparecer. Michael Gira ressuscitou-a porque a vida dos Angels Of Light corria o risco de estagnar. “Estava a tornar-se previsível. Nos Swans podia procurar mais, ter a esperança de partir para outro lugar”. Conseguiu-o.

My Father Will Guide me Up a Rope to the sky, The Seer, To be Kind, e The Glowing Man, quatro disco de originais editados desde 2010, quatro discos em que a ideia de intensidade se mantém incólume, atingida através das guitarras rugindo em uníssono sobre uma batida minimal, em que manchas sonoras de sintetizadores fazem o chão em que caminha o misterioso som (folk) do saltério dos Apalaches e em que dançam fantasias de vibrafone. E sobre isto, Michael Gira a cantar como em pregação de danados para danados: “Surrender/ Take us”, assim se introduz o épico de Cloud of forgetting com que arranca “This Glowing Man”, duas horas de música composta por peças que, como o tema título, podem prolongar-se por 28 minutos.

Na entrevista de 2011, dizia que nunca se sentira tão realizado numa banda. Seis anos depois, confirma que é tudo verdade, que este conjunto de músicos onde encontramos velhos companheiros de estrada como o guitarrista Norman Westberg, presente logo no início dos anos 1980, ou Swans da segunda encarnação, como o baixista Chris Pravdica ou o baterista e percussionista Phil Puleo, levaram-no a criar “quatro álbuns representam alguns dos momento mais produtivos da minha longa carreira”. Ainda assim, o fim está anunciado. Terminada a presente digressão, que encerrará em Novembro, em Nova Iorque, estes Swans deixarão de existir. Porquê? “Sinto que se continuarmos tudo se irá tornar previsível, portanto, é tempo de mudar”, explica Gira. O problema, no fundo, é que, musicalmente, está “muito feliz”. Isso não pode ser. “Preciso de sentir algum medo”, confessa. “Digo-o num sentido estético. Medo é uma palavra ridícula quando aplicada a algo tão elevado, mas também tão privilegiado, como a música. Medo seria viver em Aleppo, em Bagdad. Mas, no que diz respeito a uma procura artística, julgo que é importante sentirmo-nos desconfortáveis”. Ouvimos o que diz Michael Gira, olhamos para o cartaz do Nos Primavera Sound e o nosso olhar fixa-se noutro nome. “Medo” e “desconforto” são palavras que não teremos dificuldade em encontrar, ditas por eles ou lidas naquilo que sobre eles se escreve. O nome é Death Grips e tocam sábado às 22h – coincidência cósmica, precisamente 24h depois dos Swans.

Sem fuga possível

Relatos vindos do recente Primavera Sound catalão, em Barcelona, descrevem um concerto tumultuoso, onde um baterista tão talentoso quanto incontrolável, Zach Hill, que conhecemos nos Hella, e um homem responsável pela caótica cascata de sons, Andy Morin, criavam os cenários para que MC Ride, nascido Stefan Burnett, expusesse perante todos, sem subterfúgios, olhos nos olhos, um mundo violento, neurótico, à beira do colapso. Ao contrário dos Swans, não há nos Death Grips ponto de fuga – pai algum nos guiará por uma corda até aos céus.

Banda de hip hop, banda noise, banda punk, banda de electrónica como arma sonora, tudo isso misturado e chocalhado violentamente, os Death Grips são um trio que nos põe frente a frente com uma realidade violenta e dilacerada, sem precisarem de nomear directamente quem seja ou o que quer que seja: está tudo no som, está tudo na forma como MC Ride rappa e grita, ou melhor, como cospe palavras, como vocifera frases nem sempre inteligíveis.

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O nome é Death Grips e tocam sábado às 22h - coincidência cósmica, precisamente 24h depois dos Swans

Aparecerem em 2010 com uma mixtape, Ex-military, que os colocou imediatamente no mapa. Dois anos depois, assinavam, surpreendentemente, com uma multinacional, a Epic, que não sabia o que lhe acabava de entrar em casa. Editaram Money Store e o single Fever (aye aye) tornou-se manifesto do contágio em curso. Depois, houve concertos incendiários e houve auto-sabotagem. Marcaram digressões em que se recusaram a aparecer, uma delas contemplava passagem pelo Nos Primavera Sound – e o público, amotinado, destruía o material de palco à vista quando o cancelamento era anunciado. Desapareceram com o dinheiro adiantado pela editora para um novo álbum e gastaram-no num hotel de luxo em Los Angeles. Gravaram No Love Deep Web e, quando a editora se recusou a editá-lo na data pretendida, disponibilizaram-no gratuitamente online – como resposta, foram expulsos da editora.

Daí para cá, de tumulto em tumulto. Lançaram nova edição, Government Plates, em 2013, e Powers That B no seguinte. Depois, em Julho de 2014, anunciaram abruptamente que iriam deixar de existir. A nota surgiu nas redes sociais da banda, escrita num guardanapo. “Os Death Grips eram e sempre foram uma exposição de arte conceptual ancorada em som e imagem. Acima e abaixo de uma 'banda'”. Os concertos marcados para datas posteriores foram, obviamente, cancelados. Seis meses depois, tão inesperadamente quanto tinham desaparecido, ressurgiram. Prometeram novo álbum e anunciaram uma digressão mundial.

Editaram Bottomless Pit, em Maio de 2016, álbum fiel à natureza da banda, álbum em que se pressente, como antes, uma ferocidade que nada nem ninguém parecem capazes de domar. Perante eles, não há nenhuma certeza para além da imprevisibilidade e da catarse que experimentamos nós, que os ouvimos, que os vemos, ao depararmo-nos com aquela tensão que se acumula, mais e mais, sem que alguma vez se deite mão a uma válvula de escape salvadora. Vamos vê-los agora, por fim. Ouçamos o som que emana das palavras de MC Ride, ditas há meia década, mas ainda actuais: “Tanto idealistas como pessimistas vivem fantasias enganadoras fundadas na sua incapacidade em lidar com a realidade das coisas. Nós somos realistas. Quem quer que se  sinta seguro é um carneiro em lavagem cerebral, pronto para a matança”.

Sábado, 22h, Parque da Cidade: O ruído do monstro perante nós é ensurdecedor. Não vale a pena escondermo-nos. Aquela massa sonora rodeia-nos e envolve-nos num abraço cada vez mais apertado. São os Death Grips a anunciarem-se. “I keep giving bad people good ideas”, grita MC Ride.

Sexta, 22h, Parque da Cidade: O ruído do monstro perante nós é ensurdecedor. Não vale a pena escondermo-nos. Aquela massa sonora rodeia-nos e envolve-nos num abraço cada vez mais apertado. São os Swans a despedirem-se.

Perguntamos a Michael Gira que trará o futuro para a banda. “Não tenho uma imagem clara da direcção que as coisas tomarão. Tenho algumas cores”. Quais? “Polka dot”, responde. Bolinhas coloridas. Não imaginaríamos outra coisa. A música continua a rugir. Fugir não é uma hipótese.

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