Louças do passado e do presente cruzam-se em Matosinhos
A Colecção de Olaria Portuguesa reúne trabalhos de vários oleiros nacionais coleccionados pelo fotógrafo Cristóvam Dias. Ao mesmo tempo, com mais de dois séculos de história, decorre a tradicional Feira da Louça.
São 25 peças da olaria portuguesa de alguns dos mais reputados oleiros nacionais que se dividem pelos nove núcleos da exposição Cristóvam Dias - Colecção de Olaria Portuguesa, patente no átrio do Teatro Municipal Constantino Nery, em Matosinhos, até 23 de Julho.
Há diabos, matarrachos, bichos exóticos e outras figuras do imaginário profano português. Peças criadas por Júlia Ramalho, Rosa Ramalho, Manuel Macedo, Lourdes Ferreira, Liberdade Sobral, Júlia Côta, Albano Carvalho, Sérgio Amaral e pelos Irmãos Mistério, quase todos oleiros da zona de Barcelos, à excepção de Sérgio Amaral, de Mangualde, Liberdade Sobral, de Odemira, e Albano Carvalho, de Bisarães, terra da olaria negra – Património Imaterial da UNESCO desde 2016.
Os trabalhos expostos são uma pequena amostra da colecção de 3 mil peças de olaria reunidas pelo fotógrafo José Cristóvam Dias (1931-2014). Há uma ligação afectiva por detrás do interesse pela olaria. O fotógrafo, que chegou a Matosinhos no final dos anos 70, descende de uma tradição de barristas de Mafra. Nos anos 90 enceta a sua busca pelos artefactos de olaria e cerâmica até reunir o espólio que a família doou à autarquia local em 2015, cumprindo a vontade do coleccionador.
As peças seleccionadas, a maior parte do século XX e algumas já do que decorre, espelham a tradição barrista assente no humor, no exagero e num certo lado primitivo e místico que remete para a pureza e simplicidade de tempos remotos.
Está lá um matarracho que toca concertina, figura que se caracteriza pelos olhos esbugalhados, há figuras zoomórficas e um diabo fotógrafo. Há ainda uma peça, de Sérgio Amaral, o Espírito da Floresta, que foi concebida exclusivamente para Cristóvam Dias, que é também o primeiro trabalho do artista em que introduz cor.
A exposição, à imagem do que aconteceu no ano passado, na primeira vez que se realizou, visa ainda prestar tributo à tradicional e centenária Feira da Louça, onde, de acordo com a autarquia, marcaram presença vários artesãos representados na colecção de Cristóvam Dias, como Manuel Macedo e Rosa Ramalho.
Mais de dois séculos de tradição da Feira das Louças
Contemporânea de Rosa Ramalho foi Maria Esteves, de Galegos, freguesia de Barcelos, até há bem pouco tempo a mais antiga louceira da Feira das Louças de Matosinhos. Durante mais de 50 anos consecutivos foi presença assídua da feira que este ano se realiza até 21 de Junho. Começou “de pequena” a moldar o barro e passou a arte a alguns dos 9 filhos.
Maria dos Anjos, 63 anos, é filha de Maria Esteves e está na feira que se realiza todos os anos em torno da praça Guilhermina Suggia, Matosinhos, por altura das festas do padroeiro da cidade. A primeira vez que rumou à feira que se destaca pela venda de louça e peças de decoração de barro “tinha 15 dias”. Nova demais para se recordar, contou-lhe a mãe que até aos 100 anos, um ano antes de falecer, há cerca de 4, ainda “fazia a feira”. “Nesse ano a minha mãe estava cá (na feira) e no dia do aniversário ainda demos um salto a Barcelos para festejar. Depois ainda voltamos”, recorda.
Da mãe herdou a habilidade para moldar o barro com as mãos e a “paciência” para estar à frente da banca das feiras que faz um pouco por todo o norte do país. Trabalhos que destaca, da sua autoria, são as figuras dos cabeçudos e o do Zé Povinho. Estão lá à venda entre as imagens que são compradas para as cascatas de São João e das miniaturas que representam uma banda filarmónica. Estas figuras já são feitas de outra forma. São o resultado de um molde que confere a todas as figuras a mesma forma. Já nos cabeçudos não há peças iguais. São trabalhos que demoram muito tempo a fazer: “Não compensa. São muitas horas de trabalho”, diz. Agora só em Janeiro é que tira um tempo para se dedicar à manufactura das peças. O resto dos meses passa-os em feiras.
A Feira das Louças decorre na mesma altura da romaria do Senhor de Matosinhos. De acordo com a autarquia, terá mais do que dois séculos, embora seja difícil de assinalar uma data exacta. No livro Memória e Coração da Feira de Louça, de Hélder Pacheco, editado em 1994, há referências a jornais da época com relatos da feira que remontam ao início do século XIX, o que, segundo o autor indica que o início da mesma aponte para uma data anterior.
Ano após ano, praticamente desde que nasceu, Maria dos Anjos volta a Matosinhos para montar a banca junto das cerca de duas dezenas que lá estão. Apesar de vender peças de autor são as louças que “têm mais saída”. “Hoje não há tanta gente interessada”, diz. Seguro é querer continuar a trabalhar com as mãos e passar a sabedoria para a próxima geração: “Deposito a esperança no meu filho mais novo que também se dedicou ao barro”.