As palavras de Merkel e o pragmatismo de Macron
1. Angela Merkel mede sempre as palavras. Aquelas que proferiu no domingo, em Munique, não foram excepção. Chegaram, no entanto, para provocar uma pequena tempestade. Quando disse que a Europa não pode continuar a depender dos EUA, acrescentou um “completamente”. Vinha de uma cimeira da NATO e outra do G7 que foram a estreia de Donald Trump na casa dos seus aliados europeus e que correram bastante mal. Ficar em silêncio não era uma opção. Está em campanha eleitoral. Mas a conclusão do seu raciocínio não podia ser mais clara: “A Europa tem de tomar o seu destino nas próprias mãos”. Para quem tivesse dúvidas, Donald Trump encarregou-se de demonstrar em Bruxelas e em Taormina que há, de facto, uma ruptura na sua política externa em relação à aliança transatlântica e à integração europeia. Não vale a pena ficar à espera que venha a evoluir para posições mais consensuais. Se quisesse, tê-lo-ia feito em Bruxelas e fez precisamente o contrário.
Segunda-feira, o porta-voz da chanceler tratou de fazer alguns esclarecimentos sobre as suas palavras em Munique, lembrando que ela continua a ser uma “atlantista profundamente convicta”. Merkel sempre valorizou a relação transatlântica, que é um pilar da política externa alemã desde o pós-guerra, mas também porque vinha do Leste e sabia por experiência própria o papel dos EUA na libertação do domínio soviético. Mesmo assim, os seus primeiros anos de mandato não foram propriamente exemplares no que diz respeito à segurança europeia e às suas relações com o mundo. Viu o poder da Alemanha como decorrente da sua força económica e levou tempo demais a compreender que a falência da Grécia e a crise da dívida ameaçavam directamente o euro. Quando, em 2011, o Conselho de Segurança votou a intervenção na Líbia, absteve-se ao lado da China e da Rússia. Quando Hollande interveio no Mali, deixou entender que não estava disponível para financiar as guerras da França. Mudou radicalmente com a crise ucraniana. Percebeu que o terrorismo e a Síria diziam respeito à Europa. Hoje, dá apoio logístico às operações militares dos EUA e dos aliados europeus contra o Daesh. A referência que Merkel fez ao Reino Unido no mesmo discurso quis dizer apenas que o "Brexit" terá consequências. Londres já veio dizer que a Europa pode contar com o Reino Unido em matéria de defesa. A primeira-ministra britânica está na posição insustentável de querer utilizar a América como uma alternativa à Europa e, ao mesmo tempo, mostrar aos europeus que precisam do seu país para uma defesa credível. Arrisca-se a perder nos dois tabuleiros.
2.A defesa europeia já subiu na lista de prioridades da União. A Alemanha e a França querem um comando operacional em Bruxelas para operações apenas europeias e tudo indica que vão lançar uma “cooperação estruturada” (prevista no Tratado de Lisboa) para a segurança e defesa com os países que quiserem avançar neste sentido. Já têm o aval da Espanha e da Itália e dos países de tradição atlântica, como Portugal ou a Holanda. Mas é apenas o início de um caminho que será muito longo e que não depende apenas do dinheiro investido. Já não se trata do soft-power, que a Europa pratica em larga escala, desde a ajuda humanitária e ao desenvolvimento às missões de peacekeeping ao serviço da ONU. O problema é outro. A Europa tem sensivelmente o mesmo número de soldados que a América, mas apenas uma pequena parte está em condições operacionais. Apenas a França e o Reino Unido têm capacidade de projecção de forças. E, mesmo assim, dificilmente dispensam o apoio norte-americano. Um exemplo: na Líbia, os navios americanos dispararam centenas de tomahawks para neutralizar a aviação de Kadhafi, antes dos bombardeamentos britânicos e franceses. A questão é saber até que ponto os europeus conseguem definir a sua própria estratégia. Olivier de France (do IRIS de Paris) e Sophia Besh (do Centre for European Reform de Londres) resumiram no site euObserver o que está em causa: os europeus têm de começar por um exercício de auto-avaliação (que nunca fizeram) sobre as suas capacidades efectivas, que inclua “a utilização e a projecção de forças, a sustentabilidade, um gasto devidamente planeado, a prontidão e a definição dos sectores onde têm de aumentar o seu hard power.” Os dois autores lembraram também que a Europa precisa de salvar a NATO do Presidente americano.
3. A eleição de Emmanuel Macron pode ajudar a fazer a diferença. O Presidente francês já começou a provar que a França está de regresso à cena internacional, orquestrando aquilo a que Pierre Haski chama de “momento Macron”, com um timing e um simbolismo perfeitos. Almoçou com Trump em Bruxelas, para receber ontem o Presidente russo no Palácio de Versalhes, a pretexto de uma exposição sobre Pedro o Grande, “o czar reformador que há três séculos veio procurar a França a via e os meios da modernidade”, lembra o mesmo analista francês. O tom não foi de cedência mas de pragmatismo. Antes do encontro, Macron tratou de esclarecer que nada ainda mudou para levantar as sanções e resolver a “intervenção” russa na Ucrânia. Depois de almoçar com Trump, disse que se tratou de “uma primeira experiência para ambos e [o Presidente americano] compreendeu o interesse de uma discussão multilateral”. Recusou-se a entrar na lógica dos “seis contra um” no G7. “Não é do nosso interesse”. Com ambos, sublinhou que a sua prioridade é combater o terrorismo.
Trump acabou por funcionar como um sinal de alarme para a Europa, que ninguém pode dizer que não ouviu. Basta que Macron e Merkel estejam à altura do que se espera deles.