Não é o dinheiro, são os valores

A Europa descansou demasiado na protecção americana. Podia ter acordado mais cedo.

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1. Muita gente escreveu que a eleição de Donald Trump seria uma ameaça à solidez do Ocidente, numa altura em que, mais do que nunca, a sua influência e as suas regras são desafiadas por novos pólos de poder. Nessa altura, ninguém acreditava que Trump ganhasse as eleições. Ganhou. E o que se previa passou a estar à vista. O Presidente já aprendeu algumas coisas. Mas nada daquilo que é essencial na sua forma de ver o papel da América no mundo parece ter mudado significativamente. A cimeira da NATO foi mais uma prova. O seu périplo pelo Médio Oriente também. Ontem, no G7, em Taormina, um tweet matinal sobre a NATO voltou a deixar muita gente perplexa: “O dinheiro já está a entrar”. Se separarmos as várias “frentes” da sua política externa, podemos chegar à conclusão de que Trump até tem alguma razão em algumas delas. É uma leitura comum a muitas das análises da sua primeira visita ao estrangeiro. Dois exemplos. Quando o Presidente exige com palavras ameaçadoras que os europeus têm de passar a pagar muito mais pela sua própria defesa, não só tem razão como está em linha com as exigências dos seus antecessores. Quando Trump acusa a Alemanha de gerar um gigantesco excedente comercial que prejudica o crescimento das outras economias desenvolvidas, é fácil de concluir que não é só ele a denunciar. O último foi Emmanuel Macron.

2. Seria, no entanto, um erro reduzir o significado das suas decisões à imprevisibilidade de um Presidente visivelmente impreparado para lidar com as questões internacionais, que estaria ainda em fase de aprendizagem. Para além da incoerência e da imprevisibilidade, Trump está a pôr em causa o mundo que a América construiu depois da II Guerra e os fundamentos da ordem liberal que criou. É aqui que entra a ideia de Ocidente. A aliança transatlântica, garantida pela NATO, significou desde a sua criação (1949) que a segurança europeia era inseparável da segurança americana. Foi assim durante a Guerra Fria. Continuou a ser na nova era da globalização e da emergência de novas potências não democráticas como a China, ou o regresso da Rússia nacionalista e agressiva. Os BRIC integravam também duas grandes democracias: o Brasil e a Índia. Mas o espírito que os unia era o desafio da hegemonia ocidental e não a partilha dos seus valores.

A NATO conseguiu responder a todos os desafios que se lhe foram colocando. Interveio nos Balcãs, na segunda metade dos anos 1990, para provar a sua razão de ser. Como dizia na altura o velho senador republicano Richard Lugar, “out of area or out of business”. Respondeu sem vacilar ao 11 de Setembro, colocando-se incondicionalmente ao lado da América. Sobreviveu ao unilateralismo de George W. Bush, que chegou a questionar a utilidade de uma aliança permanente. Recompôs-se da crise iraquiana, que a dividiu profundamente, muito mais depressa do que se previa. Com a nova desordem internacional e o mundo multipolar que desafia a pax americana, a ideia de Ocidente voltou a ser de uma enorme importância estratégica. Para conter o revisionismo russo, para conseguir integrar pacificamente a China e para fazer frente às novas formas de extremismo islâmico e de nacionalismo que tentam subverter as suas democracias.

A pergunta seguinte é simples: por que razão a aliança transatlântica sobreviveu às mudanças tectónica que o mundo está a viver, incluindo a sua poderosa aliança militar? Porque assentava no património comum dos valores da democracia liberal e da defesa dos direitos humanos, que via como universais, para além dos interesses comuns que ainda hoje partilha.

3. É a ruptura com este património comum que torna a presidência de Trump tão preocupante. Os valores não têm a mais leve ressonância na forma como olha para o mundo, e nem sequer se dá ao trabalho de recordá-los, mesmo que apenas por dever de ofício. Os pilares da relação transatlântica – a integração europeia e a indivisibilidade da segurança transatlântica – não lhe dizem nada. Se dúvidas restassem, bastaria olhar para os políticos europeus de quem gosta mais: Le Pen era a sua preferida até à semana passada, Farage o seu velho amigo, o "Brexit" uma ideia “maravilhosa” para acabar com a hegemonia alemã. Haja o que houver, vai ser difícil vê-lo condenar Putin e as suas agressões. O Presidente americano não tem uma ideologia. As suas ideias não correspondem nem ao património dos republicanos moderados, nem sequer ao Tea Party, que permitiu a sua ascensão para se ver derrotado por ele. É este o gap intransponível que afecta todas as suas decisões em matéria de relação com o mundo e as torna verdadeiramente perigosas.

4. Por uma vez, a Europa apenas tem uma parte da culpa, porque não viu os sinais, até eles lhe entrarem pelos olhos dentro. Já mudou de agulha em matéria de aumento das suas despesas militares, que crescem desde 2014. Já percebeu até que ponto precisa da NATO neste novo mundo instável e perigoso que a rodeia. Nunca desejou tanto que os EUA continuassem a liderar o mundo como agora. A questão é saber se não será já tarde demais.

Com o fim da Guerra Fria, o arsenal nuclear e convencional soviético deixou de estar às portas de Berlim e de visar território americano. A redução das despesas militares foi uma consequência óbvia. A democracia expandia-se e a economia de mercado também. A Europa chegou a embriagar-se com este novo mundo, acreditando que poderia afirmar-se como a nova superpotência com capacidade para desafiar a América e equilibrar o seu poder. Acreditou que poderia dispensá-la nos Balcãs, quando a desagregação da Jugoslávia se transformou num trágico conflito. Quatro anos e milhares de mortos depois, teve de bater humildemente à porta da Casa Branca. A França e o Reino Unido responderam a esta humilhação, lançando em St. Malo (Chirac-Blair, 1999) um embrião de defesa comum. O que é que faltou? Primeiro, a divergência de fundo entre Londres e Paris sobre uma defesa europeia autónoma da NATO. Essa divergência acabou por ser ultrapassada, quando a França regressou à estrutura militar da Aliança, da qual De Gaulle a retirou em 1966. Depois, a incapacidade alemã de assumir as suas responsabilidades em matéria de segurança e defesa. Convém lembrar que, em 2011, na Líbia, Berlim esteve ao lado da China e da Rússia, abstendo-se na votação que permitiu a intervenção militar contra Kadhafi. Já mudou. Mas a Alemanha ainda não consegue ir para além do apoio logístico à França ou ao Reino Unido, mantendo muitas das limitações que a impedem de entrar em combate. Sem o Reino Unido, a defesa europeia, com dinheiro ou sem ele, limita-se à França e ao apoio, mais ou menos limitado, de alguns outros parceiros. É uma questão de dinheiro? Também é. Mas, antes de sê-lo, é uma questão de vontade política para pôr em comum as capacidades já existentes (e que não são assim tão poucas), mas que continuam a funcionar numa lógica totalmente nacional. A parte mais fácil é o financiamento, apesar da ortodoxia dos défices. Falta acrescentar que, durante muito tempo, foram os EUA que impediram a criação de uma defesa europeia, mesmo que no seio da NATO, preferindo lidar com uma dezena de aliados do que com um bloco europeu.

5. A Europa descansou demasiado na protecção americana. Podia ter acordado mais cedo. Quando Robert Gates, que chefiou o Pentágono no primeiro mandato de Obama, foi despedir-se a Bruxelas deixou um aviso claro como a água. Se a Europa não começar a fazer mais pela sua segurança, haverá um dia em que a opinião pública americana deixará de compreender a necessidade de garantir a segurança europeia. Gates tinha razão. Trump é o intérprete desse sentimento. A única coisa boa é que ainda não parece ser maioritário. Um estudo da Pew sobre a defesa colectiva mostra que 62% dos americanos consideram que os EUA devem ir em auxílio de um aliado vítima de uma agressão. Na Alemanha, há uma maioria que pensa exactamente o contrário.

 

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