Na Alta de Lisboa, são as novas casas o embrulho dos velhos problemas?
Associação de moradores reclama mais acompanhamento das populações excluídas de um território fundado sobre o pilar da “mistura de classes”.
Até aos anos 80, as barracas e casas de alvenaria eram a porta escancarada da pobreza na zona norte de Lisboa. Era urgente urbanizar, pôr fim às barracas e consolidar um território que se queria partilhado: entre realojados e quem queria comprar casa nova em Lisboa. Era este o plano da câmara, em 1984, para urbanizar o Alto do Lumiar. O projecto, entregue à Sociedade Gestora da Alta de Lisboa (SGAL), vencedora do concurso público internacional para construção da obra, idealizava a Alta de Lisboa como uma “conclusão viva, planeada e dinâmica de uma capital moderna”. Mais de 300 “novos” hectares, pensados para 60 mil pessoas.
Trinta anos depois, o realojamento está feito por inteiro, mas apenas 30% dos chamados “apartamentos de venda livre” foram construídos. Pelo caminho, caiu o investimento e a procura. E os espaços vazios continuam à espera que ali nasça algo. “Ficaram os pobres, em casas novas, separados uns dos outros por descampados onde ia ser criado o shopping, o centro cultural,…”, é o retrato que faz José Almeida, presidente da Associação de Moradores do Alto do Lumiar (ARAL).
Caminha por um terreno “a solto”, onde alguns dos prédios do Programa Especial de Realojamento (PER) são ladeados por espaços vazios. “Parecem campos minados”. Os PER estão ali como ilhas. Apesar de estar prevista a criação de lojas e vários empreendimentos comerciais, “pouco avançou e não há qualquer equipamento que de alguma forma rompa com este estigma". José Almeida culpa a falta de atenção que câmara e investidores dedicam ao território, “agora que a crise deixou de ser desculpa”.
“Fazer a mistura de classes”
Até aos anos 50, esta era uma zona rural, das “aldeias saloias da Charneca e Ameixoeira”, recordava Manuel Salgado, vereador do urbanismo da Câmara de Lisboa, numa mesa redonda durante a Lisbon Week sobre urbanismo no Lumiar, no final de Março. A Alta de Lisboa era a periferia dentro da cidade, afastada o suficiente do centro de decisão para se sentir longe.
A construção do aeroporto desencadeou a mudança. Dos anos 40 à década de 70, a zona foi sendo ocupada por novos habitantes de Lisboa. A pobreza e a exclusão materializavam-se na construção de barracas e habitações precárias. Nos anos 60, foram construídos os bairros municipais provisórios da Musgueira Norte e Musgueira Sul, para realojar as três mil pessoas retiradas do vale de Alcântara, em resultado da construção da ponte sobre o Tejo (hoje Ponte 25 de Abril). Foram provisórios durante mais de vinte anos.
“O Alto do Lumiar nasceu dessa mistura de gentes de origens e experiências diferentes”, explica Gonçalo Antunes. Especialista em Geografia e Planeamento Regional, estudou esta transição da Musgueira à Alta de Lisboa – título do artigo que publicou em 2015. “A Alta integrou pessoas de origem africana, etnia cigana, de culturas muito diferentes”, dos moradores do Bairro da Cruz Vermelha, da Quinta Grande, da Quinta do Louro, da Quinta da Pailepa, até aos últimos, os retornados das ex-colónias que viviam no Bairro das Calvanas, que começou a ser demolido em 2005 para libertar terrenos para o projecto da Alta.
“Nos anos 60 e 70, quando havia planos homogéneos para a zona norte da cidade, pouco foi feito no Alto do Lumiar”, prossegue Gonçalo Antunes. Os bairros informais cresceram. Chega a década de 80 e é urgente um plano de urbanização, que surge em 1984 com vista ao realojamento “assente na ideia de mistura social induzida”. A ideia era “fazer a mistura de classes no mesmo território”, reafirma Manuel Salgado. Pretendia-se "dizer não aos guetos", incorporar a "convivência comum", uma ideia pela qual António Sousa Fernandes, administrador da SGAL, ainda se bate, afirmava no mesmo debate.
O projecto previa a construção de dois mil fogos ao ano, mas a crise interrompeu os investimentos e as obras. O último lote de venda livre foi concluído há dois anos. Há outro em construção. “O plano até poderia ser coeso, mas a construção foi descontinuada, o que resulta sempre em problemas sociais”, aponta Ana Verónica Neves, socióloga doutorada em crime e urbanismo. Abriu um fosso “entre a zona dos ricos e a zona dos pobres”. Assentou estigmas e preconceitos de parte a parte.
“Como é que os pais podem criar regras que nem eles tiveram?”
No território habitado por 11 mil pessoas realojadas e 17 mil a viverem em casas “de venda livre”, espera-se do urbanismo um elo social. As ruas entre a Quinta das Conchas e o Parque Oeste são o espelho da intenção do projecto: aí as casas são todas iguais, desenhadas pelo arquitecto Frederico Valsassina. Por fora, não se nota distinção entre quem as habita.
Mas Verónica Neves chama a atenção para o detalhe. “Umas fachadas são em cimento, outras em pladur. Isto envia uma mensagem de exclusão muito forte”. Apenas nos lotes de realojamento, há caixotes de lixo de rua, em vez dos caixotes individuais para cada entrada. A GEBALIS, empresa municipal encarregue da gestão, diz que as situações de vandalismo exigiram as mudanças.
A socióloga nota da parte da gestão uma “falta de noção da realidade” do bairro. “Fizeram luzes no chão do Parque Oeste e achavam que não iam partir? Claro que iam partir”. Era preciso assumir isso, diz: usar materiais antivandalismo, adoptar medidas preventivas, ensinar os moradores a cuidar do espaço.
Noutros espaços, a tentativa de integração saiu gorada, acredita a socióloga, que estudou durante quatro anos este território. Faltou acompanhamento social a quem foi realojado. Continua a faltar. “As casas são uma embalagem nova para os velhos problemas. É como fazer a coisa pela metade”.
O desemprego, a falta de qualificações profissionais e perspectivas de futuro convivem com “personalidades tensas”, pouco tolerantes, muito ansiosas. A falta de afectos foi o que mais impressionou a socióloga: a falta de acompanhamento e de apoio familiar, que cresceu com a primeira geração e se tornou “crónica” nas gerações seguintes.
Os problemas são de retaguarda. Há famílias desestruturadas, alimentadas por um ciclo de pobreza de três e quatro gerações. Onde os vícios convivem com o desemprego ou os trabalhos precários. Uns empurram os outros. As crianças crescem sem apoio nos estudos. “Como é que os pais podem criar regras que nem eles tiveram? Não se pode ensinar o que não se recebe”, expõe a socióloga.
Grande parte dos realojados mudaram de casas de alvenaria unifamiliares, para lotes com dezenas de vizinhos, ou de barracas para uma casa com tecto, chão e espaços públicos. Perderam-se relações de vizinhança. O fogareiro do fundo da rua deixou de existir. “Estas pessoas, que tinham na rua o seu espaço social, foram colocadas em gavetas com duas portas. A pagar contas. A ter responsabilidades. Claro que têm condições, mas não houve uma preparação para que aprendessem a habitar edifícios”, entende Verónica Neves. Os moradores desconfiam. Estranham. Não cuidam.
A Escola Primária 34, que existia até 2011 em pré-fabricados, é como as casas. Por fora é nova, branca, limpa. Mas "não tem nenhuma criança das pessoas que compraram casa na Alta de Lisboa, só filhos de realojados”, conta José Almeida. Nas escolas Pintor Almada Negreiros e D. José, nos últimos lugares do ranking das escolas públicas, o cenário é semelhante.
José Almeida faz uma simulação. Uma criança que entrou para a escola aos seis anos, quando a Alta de Lisboa começou a surgiu como tal, terá saído de um ensino marginal, deficitário, onde cresceu enquanto pessoa. "E, se juntarmos a isto um contexto familiar complicado e dificuldades económicas, é muito difícil que o ciclo de pobreza não se repita. E isso mudaria facilmente com uma escola diferente, inclusiva, com outras condições". A associação de moradores tem insistido na integração das famílias em “espaços neutros”, mas a resistência é grande. “Seria mais fácil se a escola fosse local de inclusão”, diz.
“Não devia ser um luxo esta população ter bons técnicos, bem como instituições competentes a trabalhar diariamente. Estas pessoas precisam de um projecto social a longo prazo, que não mude de quatro em quatro anos ao sopro das eleições”, completa Verónica Neves.
A socióloga insiste “numa verdadeira inclusão” dos moradores: a mistura dentro do mesmo edifício. “Na maioria parte dos problemas, bastava que quem decide fosse à Alta ouvir as pessoas”. Ninguém o faz, reclama. Propõe: os técnicos sociais e responsáveis devem deslocar-se ao local mensalmente e “sentir o território”, e podem ser criadas equipas multidisciplinares para motorização social do território.
“Sensação de estar longe” nunca desapareceu
A revisão do plano de urbanização, feito há cinco anos, estendeu a conclusão do projecto até 2030. São esperados 20 mil novos moradores. Em 2035, a SGAL prevê que "tudo esteja em funcionamento". Uma previsão ainda "ambiciosa", considerou o administrador António Sousa Fernandes, que depende tanto da SGAL e da Câmara, como de investidores externos.
Ana Verónica Neves duvida que o isolamento desapareça por intervenção de privados. É preciso baixar os preços, diz. “Ninguém quer agora construir ali”. É uma questão de estigma. “a Alta de Lisboa não é insegura”, garante a socióloga, “mas essa é a imagem que existe”. Uma questão “difícil de gerir”, admite Miguel Lobo, director Comercial e Marketing da SGAL. Lobo garante que não é intenção da empresa tornar a “Alta numa zona premium", mas ainda há muito a fazer”.
O sector terciário está em falta. A maioria das lojas estão vazias. O plano de urbanização definia como equipamento âncora um centro comercial, que atraísse visitantes, dinamizasse a economia local e fixasse população, mas a SGAL abre a possibilidade de rever essa questão já em 2018. Gonçalo Antunes olha no mesmo sentido: um equipamento comercial destas dimensões "já não fará o mesmo sentido que fazia nos anos 90 e 2000, quando os shoppings era verdadeiros pólos de atracção". A associação de moradores propõe, ao invés, uma ideia âncora: a Alta de Lisboa como zona privilegiada de incubadoras de empresas e startups.
Se nos anos 80, o plano queria “pôr um elástico nesta zona da cidade e a aproximar do centro”, nas palavras de Manuel Salgado, hoje o desígnio pouco mudou: é preciso “assegurar a continuidade não só do bairro, mas da cidade”. “A sensação de estar longe” nunca desapareceu, garante José Almeida, também ele morador, nascido na Musgueira. "Quem vive aqui todo o ano fica com a ideia de que está isolado de qualquer coisa".
O metro é uma questão essencial: nem a SGAL nem a associação de moradores desistem. “Não faz sentido que a Alta não tenha metropolitano. Não faz sentido a volta que se dá à cidade para ir o aeroporto, uma ligação que se faria em poucos minutos”, advoga Miguel Lobo.
Com uma rede suficiente, a “Alta de Lisboa pode mesmo alavancar o desenvolvimento de espaços adjacentes”, acredita Gonçalo Antunes. O vereador Manuel Salgado vê na mesma grandeza a oportunidade que a Alta de Lisboa representa no combate a alguns problemas do município, com a especulação imobiliária à cabeça. “A Alta pode ser um volante para controlar os preços”, dada a disponibilidade de espaço para construção, que permite aumentar a oferta de alojamento na cidade.
“Há muito” que a associação de moradores diz que deixou de reivindicar investimento financeiro. Pede para a Alta "investimento de recursos e de empenho". Mas a "Alta não está na moda ainda".