A ineficiência da justiça administrativa e fiscal
O Estado quis conferir aos tribunais administrativos e fiscais um papel central na regulação da vida social. Mas, na prática, esse papel está longe de ser concretizado.
Na quarta-feira realizou-se, em Lisboa, um seminário sobre a “Reforma da Jurisdição Administrativa e Fiscal”, promovido pelo Ministério da Justiça. Tratou-se de uma iniciativa que merece aplauso, sobretudo porque com ela se pretendeu marcar o início do debate da reforma que pode permitir a estes tribunais saírem da profunda crise de eficiência em que se encontram. E, para sair dela, é importante que se reflita sobre as razões que levaram a que estes tribunais apresentem um volume elevado de pendências. Hoje, a justiça administrativa e fiscal é uma justiça a duas velocidades: rápida para os processos mais simples (além dos processos a que lei atribui o carater de urgente), muitos deles configurando uma litigação de massa, como os recentes casos de recurso de contraordenação relacionados com a ausência ou viciação do pagamento de taxas de portagem, e muito lenta para os processos mais complexos. Em 31 de dezembro de 2016, na área fiscal, cerca de 26,3% dos processos pendentes sem sentença em primeira instância tinham entrado no tribunal há mais de cinco anos, e cerca de 5,8% há mais de oito anos; e, na área administrativa, 16,5% tinham entrado há mais de cinco anos e 4,2% há mais de oito anos. Se somarmos os anos que, em caso de recurso, ainda têm de aguardar nos tribunais superiores, facilmente se conclui como a morosidade põe em causa direitos de cidadãos e de empresas.
O ano 2004, com a entrada em vigor da reforma do contencioso administrativo, significou uma rutura normativa com o passado herdado do Estado Novo, abrindo as portas do sistema judicial a litígios até então dele excluídos e aprofundando o acesso ao direito e à justiça, designadamente com o aumento significativo da rede de tribunais administrativos e fiscais de primeira instância. A reforma da justiça administrativa e fiscal, concluída nesse ano, tinha dois objetivos fundamentais: ampliar a tutela jurisdicional efetiva e responder, com qualidade e eficiência, à procura dirigida àqueles tribunais. Por força das várias alterações legais que transferiram para esta jurisdição litígios tradicionalmente na esfera da jurisdição comum, mas também da crise económica e financeira, em menos de duas décadas estes tribunais tornaram-se não só a arena judicial em que a fronteira entre os poderes político e judicial mais se discute, sobretudo por via das ações que pretendem contestar a concretização de determinadas políticas públicas, como também no campo judicial privilegiado para fazer valer importantes direitos dos cidadãos e das empresas, postos em causa, por ação ou omissão do Estado ou de entidades para quem o Estado transferiu o exercício de importantes funções públicas. Hoje, aqueles tribunais ocupam-se de casos de grande relevância para a vida de cidadãos e de empresas, como, por exemplo, de negligência médica, trabalho na função pública, previdência e aposentação, contratos com entidades públicas, licenciamentos, contestação de impostos e taxas, etc. Mas os objetivos reformistas estão longe de serem alcançados, essencialmente pela ineficiência dos tribunais.
O Observatório Permanente da Justiça apresentou, naquele seminário, um estudo que inclui um diagnóstico detalhado da situação de cada tribunal e um conjunto alargado de recomendações que consideramos essenciais para que se crie uma dinâmica de eficiência nesta justiça. Como pedagogia jurídica é importante que se olhe para as razões da morosidade destes tribunais, até porque muitas delas se repetiram com a reforma do mapa judiciário, levada a cabo pelo anterior Governo, mostrando a dificuldade em aprendermos com os erros do passado. Em primeiro lugar, a reforma, em 2004, não tinha condições práticas para entrar em vigor, que se concretizava, entre outros: a) no subdimensionamento dos recursos humanos; b) numa reforma pensada sobretudo para a justiça administrativa — o que levou à transferência de juízes para a área fiscal quando tinham sido formados para trabalharem na área administrativa e à consequente redução dos recursos da área administrativa; c) transferência maciça de processos fiscais para os novos tribunais, que, aliada à inexperiência e à de deficiente formação dos novos juízes, rapidamente ficaram congestionados; d) deficiente funcionamento do sistema informático de apoio a estes tribunais (SITAF); e) ausência de mecanismos e de ferramentas de gestão processual e de formação para o exercício de funções dos juízes presidentes; f) deficiente quadro legal e de recursos humanos do sistema de inspeções; g) ausência de programas de formação contínua, em especial para os funcionários. Em segundo lugar, o desenvolvimento da reforma é paradigmático do que tem sido a evolução de reformas estruturantes neste setor. Sem uma adequada e consequente monitorização, não só não se procurou corrigir os desequilíbrios de origem como, nalguns casos, se agravaram com soluções avulsas, como medidas de recrutamento e formação de juízes pouco exigentes, sucessivas redistribuições de processos, em si mesmo geradoras de ineficiência, e ou controlo meramente burocrático da gestão processual. O Estado quis conferir aos tribunais administrativos e fiscais um papel central na regulação da vida social. Mas, na prática, esse papel está longe de ser concretizado. Esperemos que o seminário acima referido represente efetivamente um passo significativo de mudança.