Cimeira Ibérica e cooperação transfronteiriça
As novas tecnologias podem dar um contributo decisivo na criação de novas centralidades transfronteiriças.
Realiza-se a 29 e 30 de Maio, em Vila Real, na UTAD, a próxima Cimeira Ibérica. Em agenda, como tópico central, a cooperação transfronteiriça. Na mesma ocasião tem lugar um seminário luso-espanhol para discutir o assunto. Adianto, desde já, algumas reflexões que terei a oportunidade de partilhar na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Em 30 anos de integração, Portugal teve 15 anos de convergência e 15 anos de divergência económica. Sabemos que o período entre 2011 e 2014 foi muito atípico, condicionado pelo programa da troika que colocou em compasso de espera a política de coesão e a cooperação transfronteiriça. Por outro lado, não há, ainda, na actual fase da zona euro, doutrina e estratégia para uma Europa das Regiões, desde as macrorregiões de 50 a 60 milhões de cidadãos (a península ibérica) até às Eurorregiões e Eurocidades transfronteiriças, conhecidas como agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT). Apesar de já haver alguns ensaios há, ainda, um longo caminho a percorrer para estas “jovens comunidades territoriais” de países, de regiões e de cidades.
E, no entanto, sabemos, também, que a cooperação de proximidade é um recurso relativamente abundante que pode ser usado de forma inteligente e colaborativa pelos vizinhos. Sabemos que Portugal e Espanha formam um “ecossistema de cooperação natural” e que essa colaboração faz parte do ADN peninsular. Sabemos, por exemplo, que o Alentejo e o Algarve são regiões de transição entre a área metropolitana de Lisboa e a área metropolitana de Sevilha, um corredor que é preciso conceber e organizar de modo muito mais imaginativo e prometedor.
Sabemos, igualmente, que o Mediterrâneo e o Atlântico, depois das primaveras árabes, do “Brexit”, da suspensão do tratado transatlântico e da presidência Trump podem sofrer consequências geopolíticas imprevisíveis sobre o sudoeste peninsular, a justificar a criação de um posto de observação privilegiado neste canto mais ocidental da península euroasiática.
Já sabemos que o objectivo principal da Cimeira Ibérica, de resto politicamente anunciado, é criar novas centralidades transfronteiriças que sejam outros tantos lugares centrais do mercado único europeu. Para este objectivo, as novas tecnologias, as redes digitais e as plataformas virtuais podem dar um contributo decisivo. Para lá da “macrorregião peninsular” e dos seus mega-investimentos em infraestruturas e equipamentos, que não abordamos aqui, a nossa proposta de cooperação transfronteiriça é mais singela e contempla os seguintes tópicos.
1. A constituição de “plataformas colaborativas transfronteiriças”: na sociedade digital, as Eurorregiões e as Eurocidades podem relançar a cooperação transfronteiriça em torno de estruturas colaborativas de pluriactividade e plurirrendimento tendo em vista produzir novas formas de inteligência colectiva territorial.
2. Mobilidade dos Cidadãos e Serviços Pessoais: as identidades transfronteiriças dependem da mobilidade e do acesso a serviços pessoais, em concreto, de uma via verde para os jovens e os seniores, em especial, os grandes doentes de risco.
3. Uma rede/plataforma de extensão empresarial transfronteiriça com um programa e bolsa de estágios profissionais: é o corolário do princípio da mobilidade e do acesso.
4. Uma “plataforma interuniversitária de pós-graduação” com titulação conjunta: é a mobilidade de estudantes e o reconhecimento comum dos diplomas.
5. Um programa comum de proteção civil para prevenção e treino de grandes riscos: os grandes riscos reclamam a mobilidade dos serviços e dos operacionais e a troca contínua de informação pertinente.
6. Um programa-piloto de economia circular para o combate às alterações climáticas: estão em causa os solos, as linhas de água, a fauna e a flora, a biodiversidade e os serviços ecossistémicos.
7. Um programa-piloto para a reabilitação da ecologia da paisagem dos grandes rios e seus serviços ambientais: a escassez de água e as secas severas e prolongadas como o principal problema das comunidades transfronteiriças.
8. Um programa transfronteiriço de apoio a residências científicas, artísticas e culturais: visa-se a organização de eventos internacionais de grande prestígio e a criação de uma cultura comum.
9. Uma plataforma de segurança interna e transfronteiriça: a gestão da fronteira exterior entre todas as forças de segurança, devidamente acompanhada pela cooperação judicial e os tribunais;
10. Uma comunidade transfronteiriça de relações exteriores: a organização de acções conjuntas de cooperação internacional e desenvolvimento.
Em plena sociedade digital, no tempo das plataformas tecnológicas, das apps, das startups e dos espaços de co-working, estamos obrigados a dar provas concretas desta nova inteligência colectiva territorial. Agora que se prepara o lançamento do “mercado único digital”, a existência de institutos politécnicos, comunidades intermunicipais e associações empresariais ao longo da fronteira é uma excelente oportunidade para iniciativas mais arrojadas de cooperação.
A constituição de uma ou mais “plataformas colaborativas transfronteiriças” é muito útil em diversas áreas e iniciativas, por exemplo: a gestão colectiva de mercados de ocasião, bolsas regionais, marcas colectivas, bens comuns regionais, agriculturas de grupo e mercados de nicho, contratos de institutional food, gestão de bancos do tempo, redes energéticas de microgeração, circuitos curtos de comercialização, rede de microcrédito regional, moedas sociais e complementares, financiamento participativo, espaços de co-working para uma nova geração de start-ups transfronteiriças, residências científicas, artísticas e culturais, entre outros exemplos, sempre numa lógica de comunhão e partilha de interesses comuns com a sociedade civil dos dois lados da fronteira tendo em vista criar uma cultura comum de cooperação. As Eurocidades, por exemplo, podem ser um excelente campo de ensaio para desenvolver estas iniciativas.
Para lá do decálogo e das iniciativas anteriores, a economia das relações transfronteiriças para o período pós-2020 espera reformas fundamentais na política europeia: um orçamento para a zona euro e mudanças no pacto de estabilidade e tratado orçamental, um mecanismo de perequação regional no quadro de uma estratégia para a Europa das Regiões e no âmbito mais vasto do mercado único digital, cuja regulação precisa de ser devidamente acautelada. Este é, de resto, o enquadramento certo para uma “cooperação reforçada” nas relações transfronteiriças, em particular, através do aprofundamento do direito comunitário sobre os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) e seus instrumentos específicos de financiamento.
Não esqueçamos o essencial. A cooperação transfronteiriça é o campo privilegiado para o regresso dos “bens comuns” e é na provisão dos bens comuns que deve estar focada a governação territorial multiníveis: serviços ambientais, serviços educativos e formativos, serviços de saúde e proteção social, serviços de proteção civil, serviços de mobilidade acessível, serviços tecnológicos, criativos e culturais. Precisamos, portanto, de ensaiar várias “plataformas colaborativas” que nos ajudem proactivamente a promover e a patrocinar novas iniciativas na região transfronteiriça, não apenas administrando serviços partilhados e algumas infraestruturas de carácter colaborativo mas, também, patrocinando instrumentos de gestão e financiamento participativos e estabelecendo as pontes necessárias com outras redes colaborativas europeias que se movimentam nas mesmas esferas de actuação.
O autor escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico