O Brasil volta a precisar de “Directas já”
A subida de Temer ao poder tinha toda a pestilência das operações pensadas para alguém salvar a pele à custa da pele de outrem.
Deputados da oposição a Michel Temer deixaram-se ontem filmar exibindo cartazes onde se podia ler: “Eu já sabia”. Eles já sabiam que, mais tarde ou mais cedo, os estilhaços da operação Lava Jacto haviam de atingir o presidente. Todos sabíamos que, mais tarde ou mais cedo, as investigações judiciais haviam de encontrar modo de dar corpo às suspeitas de envolvimento do presidente num escândalo de corrupção que está a devastar o Brasil. Porque na origem deste conhecimento estava uma evidência sórdida e incontornável: a subida de Michel Temer ao poder, na sequência da aprovação do impeachment a Dilma Rousseff, tinha toda a pestilência das operações pensadas para alguém salvar a pele à custa da pele de outrem.
Dilma saiu por ter gasto verbas sem cobertura na lei do Orçamento e é suspeita de recorrer a um “caixa 2” para financiar a sua reeleição em 2004. Mas o líder da operação na Câmara dos Deputados que levou ao seu afastamento, Eduardo Cunha, foi condenado a 15 anos de cadeia por corrupção. Dilma foi destituída porque governou mal, porque as suas políticas económicas estavam a levar o Brasil para o abismo, mas não integrava a enorme teia de suspeitos que o Lava Jacto criou e que a “delação do fim do mundo” protagonizada por altos quadros da construtora Odebrecht está a incriminar. Michel Temer foi o seu vice-presidente e não resistiu ao perfume do poder libertado pela queda de Dilma, mesmo que fosse frequentemente citado como um dos suspeitos do assalto que terá desviado 3500 milhões de euros da estatal Petrobras. Já se sabia o que ia acontecer.
Um presidente suspeito de ligações à quadrilha, que nasceu de um golpe, mesmo legal, que foi apoiado por um Congresso e uma classe política com 98 protagonistas apanhados na maré da Lava Jacto, só podia ser um presidente a prazo. Já se sabia: Temer não era uma solução capaz de tapar as feridas que a corrupção abriu na política brasileira. Pelo contrário, ele é o cérebro de um partido, o PMDB, que desde 1986 é o farol do “fisiologismo” e o covil onde nasce e medra uma boa parte do oportunismo e da venalidade da política. Com a justiça brasileira a assumir-se como a referência moral da vida pública e a ser objecto de amplo apoio popular, mesmo recorrendo a diligências ilegais dignas de uma ditadura, esta vaga de políticos poderia apenas tentar iludir a realidade e esconder a raiz do problema. Nunca seria a solução de coisa nenhuma. Uma crise aberta pela corrupção não se resolve pela mão de suspeitos de corrupção.
Tarde ou cedo, Temer acabará por cair. Já não só as ruas da esquerda, que recuperam o slogan das “Directas Já” para forçar a queda da ditadura, em 1983/84, a exigi-lo. Personalidades como o magistrado Joaquim Barbosa, que se tornou um herói a conduzir o caso do Mensalão, juntaram-se à vaga de fundo. A maioria dos brasileiros quer o que qualquer cidadão normal deseja: um país normal, sem velhacos a governá-lo. Mesmo que haja vozes da direita a dizer que as gravações com Temer a incentivar o pagamento de subornos ao encarcerado Eduardo Cunha nada provam, apesar de todos os constrangimentos constitucionais, o Brasil só pode aspirar a um novo ciclo se limpar a lama que hoje entope o Governo e o Congresso. Para isso, tem de devolver a voz à soberania popular. Só eleições directas, e não uma eleição indirecta entre deputados e senadores que uma eventual renúncia desencadearia, podem abrir uma nova página no regime.
Se esse passo vai ser conseguido pela cassação dos mandatos originais de Dilma e Temer, num processo que começa a ser decidido já em Junho, se através de uma emenda constitucional já proposta na Câmara dos Deputados, pouco importa. Em democracia, há momentos em que é preciso fazer reset. A imagem do breve presidente populista Jânio Quadros empunhando uma vassoura para varrer a corrupção faz hoje sentido. Sem um Congresso e um presidente legitimados pelo voto, sem o afastamento da quadrilha que vai de Temer a Aécio Neves, essa lamentável criatura que conspurcou com dinheiro a memória do avô Tancredo, um exemplo ético irrepreensível na transição da ditadura para a democracia, o Brasil continuará a patinar na escória. E quando se patina na escória, só se consegue espalhá-la por todo o lado.