Bactérias dos intestinos podem melhorar eficácia de fármacos contra o cancro

Estudo de cientistas portugueses publicado na revista Cell revela como as bactérias dos intestinos podem alterar as características químicas de um fármaco usado contra o cancro colorrectal, conseguindo que o tratamento seja mais eficaz.

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Bactéria comensal Escherichia coli (E. coli) que existe nos intestinos Haney Carr/CDC

E se algumas das bactérias que vivem nos nossos intestinos não só não nos fizessem mal nenhum (como, aliás, é o caso da maioria que lá se encontra), mas ainda nos ajudassem a melhorar a eficácia de um tratamento para o cancro? Uma equipa de cientistas liderada por investigadores portugueses na University College de Londres publicou um artigo na revista Cell que mostra como as bactérias nos intestinos podem interagir com um fármaco usado no cancro colorrectal e melhorar a eficácia do tratamento.

Há vários cientistas que suspeitam que a resposta para muitos dos nossos problemas de saúde pode estar no microbioma intestinal (o conjunto de bactérias que habita os intestinos). Passo a passo, têm sido reveladas relações íntimas entre o ambiente dos intestinos e as mais diversas funções (e disfunções) do nosso organismo, desde neurológicas e cognitivas até às inflamatórias e metabólicas, entre outras. Desta vez, uma equipa de cientistas confirmou a interacção entre o microbioma intestinal e os fármacos usados para combater o cancro, esclarecendo o mecanismo que explica uma influência positiva das bactérias.

Para o estudo foi utilizado um verme que é muito usado pelos cientistas como modelo animal (o nemátodo Caenorhabditis elegans, ou apenas C. elegans) e uma bactéria comensal (que não causam problemas e que são a maioria no nosso corpo) que existe nos intestinos deste verme e também do ser humano, que neste caso foi a bactéria Escherichia coli (E. coli).

Os investigadores analisaram 55 mil diferentes “cenários” no C. elegans, manipulando e variando os genes das bactérias e também alterando as doses e o tipo de fármacos. Por fim, recorreram à informática para mapear em detalhe como o perfil genético das bactérias, a dieta e os compostos químicos afectavam a eficácia de um medicamento que é usado para tratar o cancro colorrectal.

“Conseguimos identificar genes nas bactérias que regulam a acção do fármaco (fluorouracil) no hospedeiro e descobrimos que tanto a vitamina B6 como a vitamina B9 (ácido fólico) são essenciais na eficácia do tratamento induzido pelas bactérias no contexto deste fármaco”, explica ao PÚBLICO Leonor Quintaneiro, investigadora no University College de Londres (UCL) e primeira autora do artigo publicado na Cell. De acordo com um comunicado da UCL, esta descoberta reforça a ideia dos benefícios que poderão surgir da manipulação das bactérias dos intestinos e da dieta para melhorar o tratamento de cancro.

A cientista confirma que “existem diversos estudos que ilustram a relação que pode haver entre o microbioma intestinal e a eficácia de certos tratamentos oncológicos”, mas nota que “apesar das recentes descobertas, desconhecia-se o método e mecanismo da influência positiva ou negativa das bactérias durante certos tratamentos”. “Ao contrário destes estudos, o nosso trabalho, ao utilizar um modelo simples e facilmente manipulável, permitiu-nos decifrar os mecanismos metabólicos nas bactérias e que são responsáveis pelo impacto na eficácia destas drogas.”

Somos mais do que genes

Os resultados obtidos estão associados ao cancro colorrectal. Mas, será possível extrapolar e afirmar que a eficácia de outros tratamentos para outros tipos de cancros também é influenciada pela microbiota nos intestinos? “Dada a complexidade do microbioma humano e a variedade de drogas utilizadas no tratamento oncológico, é possível que existam interacções, por enquanto desconhecidas, entre o hospedeiro e certas espécies de bactérias comensais”, refere a investigadora, que acredita que “a interacção não tem necessariamente de estar relacionada com doenças associadas ao intestino”. A descoberta sobre o mecanismo usado pelas bactérias para alterar as características químicas de um fármaco com impacto na eficácia será “apenas a ‘ponta do icebergue”, diz Leonor Quintaneiro.

Por outro lado, a equipa percebeu também que as bactérias que “ajudam” a melhorar a eficácia dos fármacos para o cancro serão sensíveis a outros factores, como outras terapias que o doente esteja a fazer. Os investigadores concluíram, por exemplo, que um medicamento para a diabetes reduziu a eficácia do fármaco fluorouracil usado nos vermes, inibindo a influência positiva das bactérias.

E qual será o peso da dieta? O que enviamos para os intestinos e o ambiente que ajudamos a construir tem algum impacto? “De momento, estamos a investigar como a nossa dieta (e a sua composição) influencia estas interacções entre drogas, bactérias e hospedeiro na eficácia de certos tratamentos contra o cancro e também a diabetes”, responde a investigadora.

Filipe Cabreiro, investigador da UCL que coordenou este trabalho, acredita que todas as frentes de trabalho que exploram as possíveis interacções entre o microbioma e o seu hospedeiro vão acabar por dar importantes respostas. “O estudo do microbioma humano tem, de facto, demonstrado que somos muito mais do que apenas os nossos genes”, refere, defendendo que esta linha de investigação pode viabilizar, no futuro, novos meios de diagnóstico e terapêuticos, assim como uma forma de medicina personalizada. “Por exemplo, estudos sobre o impacto de fármacos no microbioma ajudarão a promover terapias oncológicas personalizadas que tenham a capacidade de reduzir a toxicidade e aumentar a eficácia de uma dada terapia. A ideia de que os nossos genes comandam a nossa vida começa a estar ultrapassada.”

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