O que é que as bactérias dos intestinos têm a ver com a doença de Parkinson?

Prémios de neurociências da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa no valor total de 400 mil euros anunciados esta quarta-feira.

Foto
Prémio Neurociências da Santa Casa da Misericórdia é atribuído deste 2013 Enric Vives-Rubio

Qual a relação entre as bactérias que podem instalar-se nos intestinos e a doença de Parkinson? E como se poderá minimizar os efeitos da disfunção da bexiga após lesões vertebro-medulares? Os projectos de investigação que podem vir a responder a estas duas questões receberam um prémio de 200 mil euros cada atribuído pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

A investigadora Sandra Cardoso, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e do Centro de Neurociências e Biologia Celular, é a líder do projecto que promete investigar a intrigante relação de um tipo de bactérias que colonizam os intestinos e produzem neurotoxinas com a doença de Parkinson. O trabalho venceu o prémio Mantero Belard 2016, um dos dois galardões atribuídos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa para incentivar a investigação científica em Portugal na área das neurociências.

Os investigadores suspeitam que a doença de Parkinson esporádica (sem história familiar e que é a forma mais comum) pode ser desencadeada pela acção de um tipo de neurotoxinas com origem na microbiota intestinal, a complexa sociedade de microorganismos que habita este órgão. O principal suspeito são as chamadas melainabactérias, um grupo de bactérias que se adapta ao escuro e que pode facilmente alcançar o intestino a partir de fontes ambientais como, por exemplo, a água que nos chega a casa.

Assim, os cientistas acreditam que existe uma correlação entre estas bactérias, a colonização crónica dos intestinos com produção de neurotoxinas e o início da doença de Parkinson esporádica. A investigação partiu de uma série de sinais que levantaram as suspeitas. Assim, nota Sandra Cardoso, percebeu-se, por exemplo, que alguns dos doentes de Parkinson apresentavam queixas de obstipação anteriores ao aparecimento de sintomas motores da doença de Parkinson.

Foto
Sandra Cardoso, investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, venceu o prémio Mantero Belard 2016 DR

Por outro lado, a ligação entre a microbiota intestinal e o cérebro não é inédita e tem sido explorada nos últimos anos. Entre a variada população de bactérias que existem, há algumas que podem causar um desequilíbrio e afectar o funcionamento das células e causar problemas como a obstipação ou inflamação crónica.

E as neurotoxinas produzidas por algumas destas bactérias podem afectar o funcionamento dos nossos neurónios? A neurobióloga acredita que sim. Mais do que isso, o trabalho desenvolvido até agora parece demonstrar que a acção destas neurotoxinas com origem nos intestinos pode ser o “gatilho” das alterações observadas nos neurónios que acabam por afectar o fornecimento de energia às células e, assim, desencadear a degeneração característica desta doença.

Se assim for, a presença de melainabactérias nos intestinos poderá funcionar como um biomarcador para a doença de Parkinson. O objectivo do projecto é evitar esta cascata de acontecimentos que começa numa bactéria, passa por uma neurotoxina, chega aos neurónios e faz com que a doença se desenvolva. Como? “Identificando alvos para novos fármacos com um efeito combinado de antibiótico e antiparkinsoniano”.

Sandra Cardoso e o microbiólogo Nuno Empadinhas, também do Centro de Neurociências de Biologia Celular de Coimbra, orientam a equipa que vai tentar confirmar essa hipótese com estudos em modelos animais (ratinhos), análises a material fecal de cerca de 50 doentes e ainda com o estudo de cérebros (post mortem) conseguidos em biobancos. E o prémio da Santa Casa vai servir para isso mesmo, diz Sandra Cardoso.

Não esperar para agir

Célia Cruz, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, é a principal responsável pelo trabalho que venceu o prémio Melo e Castro 2016. O objectivo deste trabalho é, no fundo, melhorar a qualidade de vida dos doentes com lesões vertebro-medulares que (na maioria dos casos) desenvolvem incontinência urinária.

O que a bióloga e a sua equipa estão a tentar fazer com ratos – e vão tentar fazer com doentes num estudo clínico que deverá começar no próximo ano – é antecipar o tratamento com fármacos que, normalmente, só surge com o aparecimento deste problema, uns meses após a lesão.

Foto
Célia Cruz, investigadora da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, venceu o prémio Melo e Castro 2016 DR

“Quando há este tipo de lesão, o organismo leva o seu tempo a reorganizar-se e espera-se pelo aparecimento da incontinência que surge na maior parte dos casos e só nessa altura é que este problema é tratado”, explica Célia Cruz ao PÚBLICO, adiantando que neste tempo de espera geralmente se recorre a uma algália para controlo da bexiga. Quando a algália é retirada e a incontinência é confirmada, inicia-se o tratamento farmacológico (injecções com a toxina botulínica, por exemplo) e também o treino funcional em sessões de fisioterapia.

Célia Cruz e a sua equipa acreditam que não é preciso esperar tanto tempo para agir e propõem aplicar este tratamento numa fase mais precoce da doença. É isso que já estão a fazer no laboratório com ratos e que parece estar a ter bons resultados, avança a investigadora, que admite que será necessário testar várias doses e momentos de administração do tratamento com a toxina tradicionalmente usada e outras que podem ajudar a regular a transmissão nervosa.

A investigadora lembra que os doentes que sofrem uma lesão vertebro-medular apontam para três grandes objectivos: “Voltar a mexer as pernas ou as mãos, controlar a bexiga e não ficar incontinente e recuperar o controlo da função sexual. Muitos destes doentes sentem vergonha até de falar sobre a incontinência que os condiciona muito, afectando a sua qualidade de vida”, diz a investigadora, acrescentando que quer “pelo menos, tentar minimizar este problema”.

Os prémios Santa Casa Neurociências, criados em 2013, representam um investimento anual de 400 mil euros, e têm como objectivo a promoção de investigação científica de excelência em duas grandes áreas da actuação da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: a recuperação de lesões vertebro-medulares e o tratamento de pessoas com doenças de origem neurodegenerativa, associadas ao envelhecimento.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários