Se a Rússia não vai aos segredos, os segredos vão à Rússia com dedicatória de Donald Trump
Presidente dos EUA falou sobre um plano dos extremistas do Daesh numa conversa com o ministro dos Negócios Estrangeiros russo. Jornais americanos dizem que a informação era mais sensível do que top secret e que a fonte é Israel.
Primeiro, aquilo que toda a gente quer saber: não, o Presidente Donald Trump não se arrisca a ser acusado de traição e a ser empurrado para fora da Casa Branca. Agora, aquilo que poderá realmente acontecer: ao revelar mais do que devia sobre um plano do Daesh ao ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, durante uma reunião na Casa Branca, Trump alargou a brecha na confiança entre os Estados Unidos e os seus aliados e irritou ainda mais a comunidade de serviços secretos norte-americana. Tudo somado, no fim se verá se foi mais um passo em direcção àquilo que toda a gente quer saber.
A notícia foi avançada pelo jornal Washington Post na noite de segunda-feira, e foi o segundo abalo nas estruturas da Casa Branca em duas semanas seguidas. Ainda a apanhar os cacos do despedimento do director do FBI, a Administração Trump viu-se confrontada com uma nova crise, quando se soube que o Presidente dos Estados Unidos partilhou com Sergei Lavrov informações sobre um plano dos extremistas do Daesh na Síria.
Segundo a notícia do Washington Post – que foi confirmada pelo Wall Street Journal, New York Times, Reuters, CNN e Buzzfeed –, essas informações estavam na pasta dos segredos mais sensíveis das agências norte-americanas (conhecida como code-word).
Na prática, há três níveis de segredos: informação confidencial, cuja divulgação pode causar danos à segurança nacional norte-americana; informação secreta, que pode causar danos sérios; e informação top secret, cuja divulgação pode causar danos excepcionalmente sérios à segurança nacional. O nível code-word é tão sensível que está um nível acima disso – nem sequer é partilhada com muitos dos responsáveis que têm acesso a informação top secret.
Não se sabe exactamente o que foi falado entre os dois responsáveis na reunião que decorreu na semana passada, porque o Washington Post fez um esforço para não revelar mais informações sensíveis, mas o que foi escrito não foi desmentido por Donald Trump. Durante a conversa, em que também participou o embaixador russo em Washington, Sergei Kisliak, o Presidente norte-americano gabou-se de receber "informações secretas fantásticas" e falou sobre um plano do Daesh para cometer atentados em aviões.
Israel pode ser a fonte
Até aqui, tudo parece mais ou menos normal: apesar de a anexação da Crimeia, há três anos, ter afastado os dois países, os Estados Unidos e a Rússia continuam a trocar informações sobre terrorismo e, em particular, sobre aquele grupo extremista – ainda que, ao contrário do que se possa pensar, não exista qualquer plano conjunto para combater o Daesh no Iraque e na Síria, onde Washington e Moscovo têm interesses divergentes.
O problema é outro. De acordo com o relato do Washington Post, Donald Trump acabou por revelar o nome da cidade em que essa informação foi recolhida, algo que provoca dois problemas com consequências imprevisíveis: por um lado, é uma quebra do protocolo entre aliados, já que o país que obteve essa informação não autorizou a sua divulgação à Rússia; por outro lado, ao saber em que cidade a informação foi obtida, a Rússia pode descobrir que serviços secretos operam nessa área e tentar eliminar a fonte.
A questão é ainda mais sensível porque a informação foi obtida através de um país com quem os Estados Unidos têm uma "aliança sensível" em relação à partilha de espionagem – o que exclui países como a Austrália, o Canadá, o Reino Unido e a Nova Zelândia (que fazem parte do grupo conhecido como Five Eyes), e indica que a fonte terá sido um país do Médio Oriente. Nesta zona a recolha de informação secreta é particularmente sensível e perigosa, já que a espionagem norte-americana é feita com base nos serviços secretos locais, que infiltram os seus agentes em grupos extremistas como o Daesh e a Al-Qaeda. Ao fim da tarde desta terça-feira, o New York Times noticiou que a fonte das informações que Trump passou a Lavrov é Israel – a confirmar-se, a relação entre os EUA e o seu principal aliado no Médio Oriente pode piorar devido ao receio de que a Rússia possa partilhar essa informação com o Irão, um aliado de Moscovo e adversário de Washington e Telavive.
Se antes deste caso já vários países tinham levantado dúvidas quanto à partilha de informações secretas com a Administração Trump (como Israel, que receia a maior proximidade dos EUA com a Rússia), é possível que outros aliados pensem duas vezes antes de colaborarem com Washington, sabendo que as informações recolhidas a muito custo podem acabar na secretária de Vladimir Putin sem que a Rússia faça um grande esforço.
Confusão na Casa Branca
A somar à notícia desta semana do Washington Post e ao despedimento do director do FBI na semana passada, a Administração Trump viu-se também embrulhada num enorme problema de coordenação e comunicação que está a roubar anos de vida a responsáveis como o porta-voz da Casa Branca, Sean Spicer, e começa a chatear alguns senadores do Partido Republicano.
Tanto num caso como noutro, a Casa Branca colocou alguns dos seus responsáveis nas televisões para fazerem passar uma explicação sólida sobre o que se passou – mas, tanto num caso como noutro, o próprio Donald Trump acabou por desmentir os seus subordinados poucas horas depois.
Quando se soube que Trump tinha despedido o director do FBI, vários representantes da Casa Branca garantiram que o que estava no comunicado do Presidente era aquilo que deveria ser noticiado: Comey foi despedido na sequência de uma recomendação do procurador-geral adjunto, Rod Rosenstein, que criticou a forma como o director do FBI geriu a investigação aos e-mails de Hillary Clinton. No dia seguinte, numa entrevista à NBC, Donald Trump disse que iria despedir o director do FBI com ou sem recomendação, deixando os seus representantes sem saber o que fazer às garantias que tinham dado algumas horas antes.
Desta vez, o secretário de Estado, Rex Tillerson, e o conselheiro de Segurança Nacional, H. R. McMaster, vieram garantir que a notícia do Washington Post era uma mentira pegada. Ambos os desmentidos desmentiram algo que o jornal não escreveu, mas ainda assim os dois altos responsáveis puseram a sua reputação em risco: McMaster disse que Trump não tinha revelado "fontes e métodos" (quando o Washington Post não disse isso), e Tillerson disse mais ou menos o mesmo, admitindo que foi discutida "a natureza de ameaças específicas", mas desmentindo que tenham sido referidos "métodos, fontes ou operações militares" (mais uma vez, algo que o Washington Post não escreveu).
Mas, na manhã desta terça-feira, Donald Trump usou o seu habitual púlpito, o Twitter, para dizer algumas coisas sobre o assunto, embora nenhuma delas tenha sido para desmentir a notícia do jornal norte-americano: "Como Presidente, quis partilhar com a Rússia (numa reunião marcada com conhecimento público) factos sobre o terrorismo e a segurança da aviação comercial. Por razões humanitárias, e porque quero que a Rússia reforce a sua luta contra o terrorismo e o ISIS [outra sigla para o Daesh]".
Resumindo, na primeira oportunidade que teve para esclarecer o assunto, o Presidente não emitiu um desmentido e acabou por sacrificar mais dois elementos da sua Administração.
Destituição muito distante
Mas todos estes casos – e, em particular, o mais recente – não significam que Donald Trump esteja perto de se ver envolvido num processo de destituição.
Apesar de Trump ter partilhado informação ultra-sensível com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, o Presidente dos Estados Unidos tem poderes para desclassificar qualquer informação confidencial – não é preciso nenhum decreto especial; ao revelar esse segredo, ele torna-se automaticamente público.
Para além disso, Donald Trump nunca poderia ser acusado de traição porque os Estados Unidos não estão em guerra com a Rússia. A traição depende de um acto que facilite o objectivo de um inimigo externo ou interno para pôr em causa a segurança e a soberania dos Estados Unidos, ou combater fisicamente contra as tropas norte-americanas.
Finalmente, só terá sentido falar sobre um processo de destituição contra Trump se ocorreram um de dois factores, ou os dois em conjunto – por um lado, a revelação de um escândalo de proporções épicas, e com provas sólidas, semelhante ao que aconteceu no caso Watergate com o Presidente Richard Nixon; por outro lado, os congressistas do Partido Republicano têm de se encontrar numa situação em que se torne impossível defender o seu Presidente.
Nos dois únicos processos de destituição que tiveram sucesso num primeiro momento em toda a História dos Estados Unidos, os presidentes estavam confrontados com uma maioria do partido oposto no Congresso – primeiro Andrew Johnson (1868) e depois Bill Clinton (1998), embora ambos tenham sido absolvidos das acusações pelo Senado, tendo continuado a exercer o cargo. Em 1974, Richard Nixon não esperou pela votação da Câmara dos Representantes e resignou.
Para que um processo de destituição arranque, é preciso que seja aprovado por uma maioria simples na Câmara dos Representantes, e confirmado por uma maioria de dois terços no Senado. Como o Partido Republicano está em maioria nas duas câmaras, o início de um processo de destituição contra Donald Trump é, por agora, uma ideia rebuscada.
Até porque os líderes do partido têm todo o interesse em concentrar-se nos próximos meses na discussão e aprovação de muitas e complexas propostas, como a nova lei sobre o seguro de saúde e a reforma fiscal. Um processo de destituição é moroso e concentra quase todos os esforços do Congresso – e o Partido Republicano quer aproveitar o próximo ano e meio para usar a sua maioria, que pode perder nas eleições para a Câmara dos Representantes e para o Senado marcadas para Novembro de 2018.