Mergulhar no corpo artístico dos Pink Floyd
É uma espécie de arquitectura da carreira dos Pink Floyd. No museu Victoria & Albert, em Londres, uma grande exposição dá-nos a ver a forma como o grupo, ao longo de cinco décadas, incorporou concepções artísticas, sociais ou teatrais na sua música.
É um novo paradigma que o museu Victoria & Albert de Londres está a instituir. Grandes exposições imersivas, que conseguem ser tão espectaculares quanto criativas, permitindo um encontro real com a obra e o universo de nomes de referência da cultura popular, lançando um olhar panorâmico sobre a forma como a música incorpora concepções artísticas, filosóficas, sociais ou teatrais, e ao mesmo tempo celebrando a tecnologia e as transformações das culturas sonoras e visuais.
Já havia sido assim com David Bowie Is, magnífica exposição que ali foi inaugurada em 2013 e que continua a circular pelo mundo (a 25 de Maio abre no Museu do Design de Barcelona), tendo sido visitada até agora por 1,8 milhões de pessoas em cidades como Berlim, Paris, Chicago ou Groningen. Agora a instituição volta a apresentar uma retrospectiva com características idênticas, prevendo-se que The Pink Floyd Exhibition: Their Mortal Remains, que foi inaugurada no sábado passado e se prolonga até 1 de Outubro, possa circular pelo globo durante os próximos dez anos, embora a sua envergadura limite o número de museus que a poderão receber.
Tal como no caso de Bowie, estamos perante uma mostra eficaz, não só para os admiradores do histórico grupo inglês, que agora celebra os 50 anos do lançamento do seu primeiro álbum (The Piper at the Gates of Dawn, 1967), como para quem não teve até agora uma relação expressiva com a sua música ou obra. É um lugar-comum, mas trata-se de uma verdadeira experiência multissensorial, que vai para lá de uma mera colecção de objectos ou de música.
Há a tentativa de oferecer aos visitantes um olhar a partir de dentro. É como entrar num corpo artístico de que reconhecemos algumas imagens, sons e objectos – só que nunca antes os vimos daquela maneira. No total, é possível encontrar mais de 350 peças, a larga maioria originais: de cartazes de concertos, instrumentos ou relíquias como a enorme mesa de mistura de The Dark Side of the Moon (1973) a imagens inéditas, capas de discos, rascunhos de letras, cartas, desenhos, jornais, bilhetes, filmes, vídeos, figurinos, partituras ou cenografias. Existem explicações sobre a escrita e a composição de algumas das canções mais seminais, bem como vídeos que descrevem as sessões que originaram as capas.
Mas a maior conquista acaba por ser a forma como essa totalidade é inscrita na recriação dos diferentes ambientes, com a equipa liderada pela curadora Victoria Broacke a dar-nos a ver e a sentir que a cada obra corresponderam diferentes pareceres, visões artísticas e processos criativos. Em simultâneo, cada período produtivo é sinalizado com material das respectivas épocas (de jornais, livros ou publicidade), forma de mostrar que as ideias que foram sendo exploradas (da literatura, da política ou da arquitectura) se relacionavam sempre com os contextos sociais. Dessa forma é-nos devolvido um renovado olhar sobre o percurso do grupo que em 1967 se formou com Roger Waters, Richard Wright, Nick Mason e Syd Barrett, depois substituído por David Gilmour.
A tudo isto o público adere em grande número. No dia de abertura, deambulava-se pelo espaço com alguma dificuldade, e para os dias seguintes a lotação já estava esgotada. À entrada são-nos oferecidos auscultadores, do tipo dos audioguides disponibilizados em exposições para contextualização de obras, mas aqui a acção faz mesmo sentido. O espaço possui sensores espalhados pelas salas que, ao detectarem a presença do visitante, iniciam o áudio, permitindo mergulhar realmente naquele universo sonoro, através de material documental ou de entrevistas, sempre com a banda sonora das canções referentes a cada momento em fundo. Existe uma correlação directa entre o que se vê e o que se ouve.
Não admira que os visitantes não tirem os auscultadores, metidos consigo próprios, deambulando pelas diferentes salas como se fossem fantasmas, envolvidos pelo imaginário dos Floyd. A iconografia do grupo, inspirada em motivos psicadélicos ou surrealistas, está presente em todos os momentos na organização do lugar. A começar pela entrada, quando somos convidados a ingressar através de uma versão gigante da carrinha a preto-e-branco que o grupo utilizava no início da carreira. É o começo, sempre com iluminação ténue, de uma viagem audiovisual pelo universo de um grupo que vendeu mais de 250 milhões de álbuns.
Dissolvidos no espectáculo
A primeira parte da mostra é dedicada aos anos iniciais, quando os Floyd integravam os circuitos mais minoritários da cultura musical londrina, tocando em clubes como o UFO. Esses primeiros tempos foram marcados pela conduta errante de Syd Barrett, cuja personalidade idiossincrática, associada à saúde frágil e ao uso de drogas, não se adequava à crescente popularidade do grupo. No entanto, é nítido que se houve um membro carismático, fotogénico, com possibilidade de ascender ao estrelato, e ao mesmo tempo capaz de marcar a existência vindoura do grupo, foi ele.
Em 1967 já dizia que a música, as luzes e a teatralização faziam parte do mesmo corpo criativo, prenunciando que o rock se iria tornar também uma experiência multimédia. A dimensão cenográfica, teatral e arquitectónica – curiosamente três dos membros estudaram arquitectura – que o grupo iria activar a partir daí foi em grande parte antecipada por ele. E os restantes membros reconhecem-no. Na sala onde o álbum Wish You Were Here (1975) é focado, podem ouvir-se entrevistas de Waters e Gilmour explicando como criaram a célebre canção que dá título ao disco, composta em homenagem ao antigo companheiro, com Gilmour a afirmar que devido “à sua ressonância e carga emocional” é uma das melhores canções de sempre dos Floyd.
Dir-se-ia que, depois de Barrett, o colectivo optou por se diluir ainda mais nos conceitos, nas imagens e nos sons. “Eles podiam juntar-se à audiência em qualquer dos seus concertos que não seriam conhecidos”, lê-se às tantas, numa menção do radialista John Peel (1939-2004) ao quase anonimato dos membros dos Pink Floyd. Poucas bandas alcançaram tanto sucesso tendo os seus membros permanecido relativamente desconhecidos. Fora do palco eram discretos. Em cima dele dissolviam-se no espectáculo de luzes e dramatismo. Não havia o culto do indivíduo. O que interessava era o evento. E a música, em que abordavam a perda, a separação, a guerra ou a infância.
Não é por acaso que a imagem que nos vem à cabeça quando se fala deles não é qualquer foto dos quatro, mas a capa gráfica do seu álbum mais celebrado, The Dark Side of the Moon, da autoria dos designers Hipgnosis. Numa década de fortes imagens personalizadas – de David Bowie aos Roxy Music –, poucas tiveram o mesmo impacto da desse disco. Não espanta que exista toda uma sala que lhe é dedicada. Hoje aquele tipo de design e minimalismo já foi muito glosado, mas há 40 anos estava longe de constituir a norma. E existem muitas outras imagens de cariz simbólico, como a dos dois homens de negócios, um deles em chamas, da capa de Wish You Were Were (1975), ou o porco insuflável voando por cima de uma central eléctrica.
Outra das grandes atracções da mostra é um conjunto de instalações gigantes. Uma delas representa Animals (1977), com a central eléctrica de Battersea, e outra a capa do álbum The Wall (1979), dominada pela figura de um aterrorizador professor em formato gigante. Uma imagem que resultou do facto de Waters ter tido, na escola, más experiências com um professor, ficando-se assim a perceber que algumas das ideias do grupo tiveram origem em episódios do passado dos seus membros.
O que se torna claro em The Pink Floyd Exhibition: Their Mortal Remains é que embora depois da edição de The Dark Side of the Moon os Floyd se tenham tornado um caso de sucesso global, o seu posicionamento e a sua música elaborada suscitaram também muitas resistências. Isso mesmo é recordado na sala que alude ao confronto “Punk vs. Pink”: a famosa t-shirt de Johnny Rotten (Sex Pistols) com a frase “I hate Pink Floyd” testemunha que alguns dos ideólogos do punk não se reviam nas concepções e no som da banda.
Depois da saída de Roger Waters, a meio dos anos 1980, fica a ideia de que do ponto de vista musical o grupo se ressentiu, embora continuasse a trabalhar de forma próxima com designers, luminotécnicos, arquitectos e ilustradores, na criação de espectáculos e imagens fortes, como as cabeças metalizadas de The Division Bell (1994). A exposição termina numa sala gigante, com grandes ecrãs de vídeo a ladeá-la, uma espécie de performance audiovisual que permite que toda a gente se sente no chão, desfrutando de música e imagens com uma qualidade ímpar. Entre o que é oferecido acaba por estar a breve reunião efectuada em 2005, no contexto do Live8, com o grupo a interpretar Comfortably Numb. Foi a última vez que os quatro estiveram reunidos.
No final, os fãs batem mesmo palmas, como se estivessem num concerto, enquanto os visitantes incautos de exposições de arte são mais comedidos, mas mostram-se igualmente rendidos numa mostra concebida de forma imaginativa e impactante, realizada com rigor mas também com sentido de espectacularidade. Tudo em grande. Como os próprios Pink Floyd.