O imaginário de David Bowie à volta do mundo

É uma exposição para ver e ser ouvida. Uma experiência. David Bowie Is, a grande retrospectiva da vida e obra de David Bowie, que iniciou uma volta ao mundo há dois anos, está agora na Holanda, sendo alvo de renovada atenção depois da sua morte.

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David Bowie is, no Museu Groninger
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David Bowie is, no Museu Groninger com a frase do artista Gerhard Taatgen
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O públicocom os auscultadores durante a visita de David Bowie is
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David Bowie is dr
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David Bowie is getty
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David Bowie dr

Foi no último sábado, pela hora de almoço, em Groningen, na Holanda. Nevava, mas nem isso demoveu os milhares de pessoas, entre avós, pais e filhos, que se amontoaram numa tenda gigante montada na praça principal da cidade. O motivo? Uma orquestra iria recriar temas de David Bowie ou alusivos a ele, intercalados com comentários, como em alguns concertos de música clássica.

O cerimonial estava marcado antes da sua morte, mas naturalmente nesse contexto acabou por ter uma ressonância diferente, com muita gente a emocionar-se. Por estes dias, na cidade universitária com mais bicicletas por metro quadrado — sim, bem mais do que em Amesterdão — proliferaram os acontecimentos à volta de Bowie, o que não é difícil de se perceber.

No Museu Groninger estreou-se a 11 de Dezembro (prolongando-se até 13 de Março) a retrospectiva David Bowie Is, que desde que se inaugurou, na Primavera de 2013, no museu Victoria & Albert de Londres, que teve acesso ao imenso acervo do músico, já passou por Toronto, São Paulo, Berlim, Paris, Chicago e Melbourne, numa autêntica rotação pelo globo que, depois da Holanda, rumará na Primavera até ao Oriente, mais exactamente ao Japão.

Em Groningen, depois da morte de Bowie na semana passada, conseguir um bilhete para ver a exposição nos próximos tempos é tarefa complicada. A frase que mais se ouve é: lotação esgotada. Compreende-se. Há o efeito provocado pela morte — com um recanto da entrada do museu transformado em santuário improvisado, com flores e mensagens a ornamentarem o espaço — mas a verdade é que a retrospectiva é magnífica, organizada em eixos temáticos, relacionando referências que desvendam as suas muitas faces, embora o itinerário respeite a ordem temporal.

É uma exposição eficaz, não só para o conhecedor da obra como para o espectador incauto que pouco sabe. É uma experiência também imersiva, em parte pela tecnologia que nos é oferecida, na forma de auscultadores convencionais. O espaço possui sensores espalhados pelas salas que, ao detectarem a presença do visitante, iniciam o áudio de música, documentários e entrevistas, permitindo um autêntico mergulho no seu universo, sempre com a banda sonora das suas canções em fundo. Existe quase sempre uma correlação entre a música e o que se vê, não surpreendendo que os espectadores nunca tirem os auscultadores, metidos consigo próprios, envolvidos por Bowie.

Ou seja, pretende ser — e consegue — algo mais do que uma colecção de objectos e música. É algo sensorial. Existe uma tentativa de fornecer ao espectador um olhar de dentro, embora os artefactos também estejam lá. No total, ao longo de dois andares e muitas salas, são mais de 300, entre rascunhos das letras, filmes, vídeos, cenografias, roupas originais usadas em digressões ou vídeos, figurinos, fotografias, instrumentos, design de álbuns, material de performances, recriação de ambientes ou quadros pintados pelo próprio (já que a pintura era uma das suas paixões), incluindo um retrato de Iggy Pop. Toda uma panóplia que nos devolve cinco décadas de actividade, que foram pela primeira vez reunidas numa grande exposição pelo Victoria & Albert.

Bowie is forever now
Percorrendo as salas percebe-se que foi influenciado e influenciou movimentos artísticos, de design, de teatro, de moda ou de cinema. É uma mostra que se foca no seu processo criativo, no seu estilo sincrético singular, nas referências por detrás da sua trajectória (surrealismo, teatro kabuki japonês ou o expressionismo alemão) e na forma como foi colaborando ao longo dos anos com agentes das mais diversas áreas criativas.

Ao longo do percurso vamos deparando com várias frases (Bowie is a translation of the future, ou Bowie is a face in the crowd, ou Bowie is all around us, ou Bowie is forever now) que parecem querer decifrar o enigma à volta da designação David Bowie Is — uma frase com sujeito, mas sem objecto, indefinida — mas mais não fazendo do que intensificar esse mistério. Talvez sugerindo que Bowie pode ser tudo e nada. Uma personagem, não uma pessoa. David Bowie e não David Jones, o seu verdadeiro nome.

Logo à entrada vislumbra-se uma frase da sua autoria (“All art is unstable. Its meaning is not necessarily that implied by the author. There is no authoritative voice. There are only multiple readings”) que nos parece preparar para o que se segue. Um labirinto sem hierarquias, onde o homem e o ser mutante, a celebridade pop e o poeta, o músico e o agente artístico sincrético que absorve tudo à sua passagem, andam a par, numa viagem que começa no bairro pobre de Brixton, passa pela boémia do Soho londrino, se refugia em Los Angeles, procura inspiração na Berlim pré-queda do muro, e assenta em Nova Iorque, devolvendo-nos um universo seu, mas sempre capaz de deixar leituras em aberto.

Em todos os momentos da exposição é explícito que fazia questão de controlar todos os processos da criação, da música às capas dos discos, da roupa à cenografia dos espectáculos, passando pelos aspectos mais negociais, mas também é visível que para concretizar a sua visão se soube rodear das pessoas certas, fossem eles coreógrafos, artistas, fotógrafos, designers, estilistas, músicos ou produtores. Não lhe interessava que fossem conhecidos ou emergentes, mas sim que fossem os mais adequados para o ajudarem a expressar o que queria transmitir.

Algumas dessas colaborações prolongaram-se no tempo, como aconteceu com o produtor Tony Visconti, que lhe produziu 14 álbuns, incluindo Space Oddity (1969) e o recente Blackstar (2016), ou com o também produtor Brian Eno, que com ele partilhava a imensa curiosidade pelos avanços tecnológicos, fossem eles referentes à música, aos instrumentos, às artes ou às transformações sociais.

É explícito na exposição, por exemplo, que teve uma curiosidade muito precoce por computadores e Internet. Com outros criativos, como aconteceu com o designer de moda japonês Kansai Yamamoto, nos anos 1970, ou com o já falecido Alexander McQueen, no final dos anos 1990, foi mais preciso, pedindo-lhes que concebessem peças muito específicas.

Era um curioso. Alguém que era capaz de desenvolver qualquer coisa de novo a partir do caos de referências, fossem elas provenientes de galerias de arte, livros, filmes, peças de teatro, música ou simples conversas. E por norma sabia o que queria. Talvez por isso nunca tenha tido relações fáceis com quem operava de forma algo semelhante a ele, como Andy Warhol. É verdade que se respeitavam (colaboraram e Bowie chegou a fazer de Warhol no filme Basquiat), mas num dos vídeos expostos, que mostra o cantor pouco à vontade na Factory a ser fotografado por Warhol, é patente que nunca morreram de amores um pelo outro.

Ambos partilhavam, no entanto, nessa altura, o fascínio por celebridades. Nos anos 1950, na adolescência de Bowie, as grandes estrelas provinham do cinema, não espantando que tenha feito audições para cinema e tido aulas para ser actor. Curiosamente, poucos anos depois, viria a ser um dos músicos que mais contribuíram para que as estrelas pop superassem em popularidade as do cinema. Mas o gosto por actuar, pela composição de personagens, nunca o perdeu, tendo tido inúmeros papéis ao longo dos tempos em filmes, na TV ou no teatro.

Influência de Kubrick
Mas tudo começou na música. Uma das recriações mais divertidas da exposição dá conta do choque que foi para adolescentes e pais verem-no pela primeira vez na TV, em 1972, cantando Starman no programa Top of the Pops, com o seu visual extravagante e figura andrógina a suscitar as mais diversas interrogações — rapaz ou rapariga? Da terra ou do espaço? — simplesmente porque nunca ninguém tinha visto nada assim.

Uma das suas grandes inspirações terá provindo de Laranja Mecânica, filme de 1971 de Stanley Kubrick. O imaginário do filme, não apenas visual, mas também psicológico, tê-lo-á levado a transformar-se no sofisticado pioneiro das identidades encenadas, questionando nesse processo as normas sociais em torno do sexo e género. Mostrando, no fim de contas, que se podia ser o que se quisesse. Antes já Kubrick havia sido importante para ele. Em 1969, os jornais reproduziam as primeiras fotos do planeta Terra visto do espaço e ele escrevia: “Planet earth is blue / and there’s nothing I can do”, apresentando-nos a canção Space oddity e Major Tom, um dos seus personagens mais complexos, o astronauta vulnerável no espaço, inspirado em 2001 Odisseia no Espaço, realizado um ano antes por Kubrick.

Ao longo da exposição, mas principalmente quando são abordados os primeiros anos, fica patente uma espécie de paradoxo. Ele, que havia crescido para o rock nos anos 1960, quando este se regia de forma militante pelas noções de autenticidade, havia vislumbrado um futuro possível na direcção, aparentemente, oposta — apostando na teatralização, nas máscaras, na mímica, na imaginação —, criando personagens como Major Tom, Ziggy Stardust, Alladin Sane, Halloween Jack ou Thin White Duke. 
Mas fica também patente que essa aparente contradição foi, afinal, a forma muito consciente que encontrou, não para se esconder, mas pelo contrário, se revelar por inteiro, complexo e total, numa encenação magistral da sua obra, vida e morte. 

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