O Alentejo no coração, uma aldeia ao fundo e o coelho fetichista
Farpões, Baldios, de Marta Mateus está na Quinzena dos Realizadores, bem como a animaçãoÁgua Mole, de Laura Gonçalves e Xá. Carlos Conceição regressa à Semana da Crítica de Cannes com Coelho Mau.
Quebrar a barreira entre ideologia e coração”
Fresco sobre o Alentejo, feito de rugas, tempo, ditados, aforismos, memória. Farpões, Baldios, de Marta Mateus, na Quinzena dos Realizadores de Cannes.
Talvez este filme, Farpões, Baldios (Quinzena dos Realizadores), tenha começado numa casa sem luz e sem água — a “casa de conto” onde Marta Mateus nasceu, perto de Estremoz. Viveu ali até aos 10 anos. “Não conseguiam pôr-me na escola. Eu queria estar com as pessoas no campo. Contavam-me as suas histórias, como elas eram quando crianças — como era partilhar uma sardinha por dez pessoas” (como era bater às portas para pedir azeite já usado para barrar no pão).
“Essa foi a realidade de mais de metade do país. Muitas dessas pessoas eram analfabetas. Mas sabiam contar histórias”. E elas foram os primeiros “filmes” que Marta viu: visões de searas a arder no Alentejo, de luta pela sobrevivência, máquinas, gado, operários, patrões. “Fui ao cinema mais tarde, só tivemos electricidade e televisão mais tarde. Os meus filmes foram essas imagens que aquelas pessoas contavam, naquela paisagem. Era a história deles, e era a minha.”
Era necessário, diz, começar com eles no cinema, começar com uma “noção de comunidade”. Era necessário fazê-los passar outra vez pela dor ao reviver as histórias. Já não são só deles. Também são dela. E o filme vinca que são nossas. “Quando a memória é partilhada ganha outra vida, num outro tempo, passando a ser, para quem a escuta, um passado que também nos pertence. A memória é também feita de imagens e cria outras imagens, mesmo quando recuperada no lugar onde se constituiu. Foram essas memórias que eu quis recuperar, as suas imagens, acompanhadas pela expressão das suas rugas queimadas pelo sol, pela voz que nos conta uma dor, pelos gestos de uma mão cansada, mas viva e pronta, onde se podem ler os vestígios. Por isso é necessário o regresso àquela paisagem, por lá estar guardada em cada canto a história daquelas pessoas, a nossa história”.
No final deste fresco (impossível) sobre o Alentejo e sobre Portugal a que ficamos agarrados depois do visionamento, continuando a ser consumidos pelas invocações e pelo exorcismo, todos são reunidos num plano: os mais velhos da infância de Marta e os mais novos que chegaram para conquistar a paisagem (muito bonita a forma como reivindicam sem negociar). A cada um é dada a voz para se nomear no genérico final. Mas até lá eles são rugas, tempo, ditados, aforismos, memória. “Esses ditados, muito abertos, despertam a consciência e o coração. É uma forma de quebrar a barreira entre a ideologia e o coração”.
O resgate da aldeia da nossa memória
A história dos últimos habitantes de uma aldeia que não se deixam submergir: Água Mole, curta de Laura Gonçalves e Xá, na Quinzena dos Realizadores, é uma delicada e emotiva associação entre animação e o documentário.
Laura Gonçalves e Xá trabalharam juntas na arte final de filmes de animação de vários cineastas. Isso ajudou a cimentar uma relação afectiva e a vontade de explorar os seus afectos: a animação e a ilustração — Laura concluiu o curso de Arte e Multimédia Animação, na Faculdade de Belas Artes, em Lisboa, Xá é licenciada em Pintura pela mesma faculdade. Viajaram pelo interior. “Eu sou de Belmonte”, começa Laura, “tinha estado em contacto com a emigração e a desertificação. Fomos encontrando pessoas, que apenas por falta de oportunidade não saíam dali. E foram elas os pilares da construção do filme, o lado documental. Depois construímos uma ficção”, com caretos e tudo, em que a memória é uma ilha rodeada de esquecimento: é a história dos últimos habitantes de uma aldeia que não se deixam submergir.
Água Mole, curta seleccionada para a Quinzena dos Realizadores, é uma delicada associação entre animação (na imagem) e documentário (no som, com as vozes das pessoas que Laura e Xá conheceram, síntese das quatro aldeias que visitaram). Essa associação faz do real uma experiência sensorial, íntima. “A animação tem poder ilimitado. Enquanto as outras expressões são mais concretas, com a expressividade das formas da animação podem-se explicar sensações”. Completa Xá: “O lado ficcional permite que mostremos o que sentimos.” São as sensações de Laura e Xá perante as pessoas e as suas memórias.
Assim Água Mole é, simultaneamente, um documento sobre histórias a desaparecerem (trata-se do resgate de uma aldeia global, a nossa memória) e a impressão das emoções das realizadoras — feita com a técnica de ponta seca, agulha a desenhar sobre acetato (assim foi realizado 40 por cento do filme, explica Xá; o restante, foi através da recriação, em digital, dessa técnica de gravura.
A forma como usamos os outros — eis o fetichismo
Coelho Mau, regresso de Carlos Conceição à Semana da Crítica de Cannes, vai-se mascarando, as transformações transportando o romantismo para a sátira — ou o romantismo é já sátira?
Três anos depois de Boa Noite Cinderela, que juntava Marx à Gata Borralheira— e ironia ao romantismo, com o guarda-roupa e os movimentos de câmara a servirem de memória a uma produção que só podia ser austera —, Carlos Conceição volta a tirar da cartola, na Semana da Crítica, um conto de fadas: Coelho Mau. Irmão e irmã fechados no amor de um pelo outro, ela com doença grave, ele a acudir. Em fundo, como um rumor, uma mãe só interessada no seu gigolo. O irmão vai colocar e tirar máscaras, mestre de um role playing que se vai fetichizando.
Três anos depois da sua anterior participação na Semana da Crítica, continuamos a perguntar a Carlos se ele se posiciona a contra-ciclo em relação à contemporaneidade que os festivais declaram: documentário, ficção do real... “Não penso nisso. Vou atrás dos meus gostos. É verdade que não tenho interesse pelo lado didáctico e realista dos filmes. Embora reconheça a utilidade de muitos desse género. O que me interessa é a honestidade em relação aos impulsos originais.”
Havia uma “ideia concreta” antes do bestiário e dos jogos eróticos: “A forma como usamos os outros, a animalidade nas relações. Se há fetichismo, é esse”. Essa ideia foi-se “travestindo”. A palavra é dele: Coelho Mau vai-se mascarando, as transformações transportando o romantismo para a sátira — ou o romantismo é já sátira?
“Tenho tendência a ver o que me rodeia com ironia. Como se tudo não passasse de mascarada. A nossa posição no mundo está condicionada pela performance.” Mas revela: é um filme investido com medos pessoais. “O terror de perder uma pessoa sem a qual não conseguimos conceber o mundo. Eu não tenho medo de morrer, eu tenho medo que a minha mãe morra.”