À volta da visita de Francisco a Fátima
Em Fátima são muitos os que têm uma história para contar. Do peregrino ao comerciante local, cinco retratos para a posteridade.
Não dormiu, mas diz que foi "maravilhoso"
A chuva não deu tréguas a quem escolheu dormir na esplanada do Santuário de Fátima, mas, pela manhã desta sexta-feira, não se ouviam vozes de arrependimento. Arnalda Vieira, bracarense de 59 anos que não quer perder a oportunidade de ver o Papa Francisco, estava sozinha, no seu posto, junto às grades, pela 1h. Pronta para enfrentar o resto da noite, com o fato impermeável e uma capa de chuva a cobri-la. Pela manhã, continuava com o mesmo sorriso: "Foi maravilhoso. Passei a noite a rezar, com muita fé. Choveu que Deus a dava, mas pus um saco plástico com o saco-cama e dentro do saco-cama pus outro saco plástico e galochas, mais o impermeável, capa, chapéu-de-chuva... E não me mexi, para não ter vontade de ir à casa de banho. Foi muito emocionante, toda a noite chegavam grupos de jovens..."
Às 9h30 do dia em que o Papa Francisco era esperado no Santuário, já não havia praticamente lugares vagos junto ao gradeamento que delineia o trajecto que ele iria percorrer da esplanada até à basílica. E a fila para a queima de velas era já uma longa serpente com várias curvas.
“Ninguém é mandado embora”
Com as tradicionais correias dos Servitas postas, Manuel Rodrigues está junto ao espaço onde o Papa Francisco irá proferir missa neste sábado, observando a multidão que se acumula na esplanada. Há 35 anos que é Servitas e as coisas mudaram muito. “Sou do tempo em que isto era tudo barro e pedra”, diz, apontando a esplanada cada vez mais colorida. As pessoas é que não mudaram assim tanto, garante. “No meio de muitos, pode sempre haver alguém mais complicado, mas é só isso. E se houver algum problema tentamos saná-lo rapidamente.” Diz que quem procura os Servitas não fica sem ajuda, mesmo que o apoio possa variar. “Se puder resolver, resolvo, se não puder, por não os perceber, por exemplo, encaminho para quem possa. Ninguém é mandado embora.” Dos episódios mais desagradáveis que guarda na memória está aquela vez, há alguns anos, quando, na Capelinha das Aparições, pediu a um homem que se desviasse do local em que se encontrava, para que o andor com a imagem de Nossa Senhora de Fátima pudesse sair, e ele se recusou. “O cavalheiro disse-me ‘eu não saio daqui’. Retirei toda a gente sem fazer barulho e ele, quando se viu sozinho, lá foi para o pé das outras pessoas. Para que ia eu estar a fazer barulho? Já sabia que ele acabaria por ter que sair.”
“Só por milagre cheguei aqui”
Em Fátima são muitos os que têm uma história para contar, sobre algo de diferente que lhes aconteceu e que atribuem a Nossa Senhora. Olga Santos, de Torres Vedras, é uma delas. Fez a caminhada a pé e está na primeira fila, encostada às grades, para garantir que não perde pitada da passagem do Papa. Há dez anos que iniciou as peregrinações a pé e garante que em Outubro ali estará de novo. “Não sei quando vou acabar”, diz. Recorda particularmente um ano em que, prestes a ser avó, descobriu que o bebé poderia nascer com algum problema genético. “Não tinha feito preparação e virei-me para o meu marido e disse-lhe: ‘Amanhã vou para Fátima.’ Ele não queria, mas fui. Pedi tanto a Nossa Senhora para chegar ao fim. Foi a caminhada em que não fiz uma única bolha no pé. Só por milagre cheguei aqui. E o bebé nasceu sem problemas.”
Bento XVI “não teve nada a ver com isto”
Há estatuetas que fazem Francisco parecer uma bonacheirona personagem de desenhos animados e outras em pose mais solene: ambas foram desaparecendo das estantes a um ritmo que, segundo Fernanda Pereira, comerciante em Fátima há 14 anos, não encontra paralelo recente. “Muita gente, muitos indecisos, porque este ano há muita variedade”, despacha desde o balcão. Há ancas de cera a 14 euros, bancos de praia a três euros e capas de chuva a oito euros. E terços, uma infinidade de terços, entre os quais o do centenário que, com um preço de tabela de 12 euros, “já está esgotado há muito tempo”.
Com Bento XVI, o último Papa a vir a Fátima, também foi assim? “Não teve nada a ver com isto! Muita gente à procura do Papa: terços do Papa, ímanes para o frigorífico do Papa, que também já não há”, responde Fernanda Pereira. Em parte por não contar com tamanha afluência e em parte para respeitar o apelo de Francisco, que pediu contenção no uso da sua imagem em parafernália do género, Fernanda Pereira não se precaveu com mais objectos alusivos ao pontífice. Consequentemente, nesta sexta-feira à tarde, o entra-e-sai das lojas era alimentado sobretudo pelo comércio de imagens de cera. As velas mais simples vendem-se a 30 cêntimos e os respectivos copos a 0,25. Noutras montras, restavam ainda ao início da tarde os ímanes de Francisco para o frigorífico, a 2,50 euros. Os terços do Papa, a 8,50 euros, estavam já quase todos desaparecidos nas bolsas e nas mãos dos crentes.
“Só queria que o Papa pusesse o meu filho a falar”
“O que queria pedir ao Papa? Só que ponha o meu menino a falar...” Andreia Simões esperou horas na fila dos doentes que se candidataram a receber a bênção do Papa Francisco, na missa deste sábado. Quando o PÚBLICO a encontrou, ao final da manhã desta sexta-feira, tinha as mãos fincadas no carrinho onde o filho, Luke Inácio, de sete anos, descansa, num alheamento típico dos autistas. Quando, há cinco anos, os médicos deram como inevitável que Luke “teria que ter um tubo para retirar o líquido que lhe fazia inchar o cérebro”, Andreia, que vive em New Jersey, nos Estados Unidos, pediu à sua mãe, a viver em Portugal, que fosse a Fátima “dar 22 voltas à Capelinha das Aparições em joelhos”. “Levou dois dias”, conta a avó, que também os acompanha. “Valeu a pena”, retoma Andreia. “O meu filho deixou de ter líquido e não precisou do tubo.” Desta vez, pré-inscreveu-se na Internet para um dos cerca de 600 lugares disponíveis para os doentes e voou desde os Estados Unidos, na esperança de que a bênção do Papa a ajude. “Queria muito que pusesse o meu filho a falar. Que me ajudasse a comunicar com ele. E a única coisa que tenho é fé.” Fé e resistência. Andreia aguentou 160 quilómetros a pé e só não chegou ao fim da peregrinação porque o pai de Luke lhe telefonou a dizer que ele estava há um dia sem comer. “Tive que desistir. O meu filho só come comigo.”