Muito vai depender da Alemanha
Será possível a Macron levar a cabo as reformas que provem a sua credibilidade face à Alemanha?
1. A questão fundamental para a Europa, como tantos analistas e políticos sublinharam, ainda o susto era palpável, é saber retirar as lições daquilo que se passou em França nas últimas semanas. E que não foi pouco. Uma extraordinária vitória de Emmanuel Macron, o candidato que não se rendeu ao status quo e que ousou fazer uma campanha a favor da esperança e contra o medo, partindo quase do zero há menos de um ano. Com direito a um confronto final que não podia ter sido mais claro e mais simbólico: a Europa contra o nacionalismo. A Ode à Alegria e a Marselhesa combinadas na mesma noite em que muitos franceses celebraram a vitória em terreno propositadamente “neutro”. Não na Praça da Bastilha mas no Louvre, junto à pirâmide que Mitterrand construiu para celebrar a modernidade e a grandeza da França. Não interessa se muita gente foi às urnas contra Le Pen e não a favor do novo Presidente. As duas voltas das eleições significam duas coisas diferentes: primeiro escolhe-se, depois elimina-se. Com Jacques Chirac foi a mesma coisa em 2002, numa altura em que o mundo ainda não tinha enveredado por uma crescente desordem e as democracias liberais ainda não tinham sido postas à prova pelas ideologias mais extremas. Portanto, talvez a primeira conclusão a tirar seja não minimizar o que a França conseguiu. Habituámo-nos de tal modo às más notícias, escreve José Ignácio Torreblanca no El Pais, que temos dificuldade em aceitar uma boa. “Trump, 'Brexit', Erdogan, Putin...”. Macron é finalmente “a boa notícia que pode sacudir a letargia europeia”, defende o investigador do European Council on Foreign Relations. “É um esforço da razão”. "Do espírito das Luzes”, como o novo Presidente disse na noite da sua vitória.
2. A segunda questão fundamental é que não chega suspirar de alívio. E, como quase sempre acontece, é em Berlim que as conclusões desta vitória serão decisivas. Hollande foi esta segunda-feira à capital alemã despedir-se de Angela Merkel. Criou com ela alguma empatia só que à custa da paralisia mutuamente consentida entre os dois países fundamentais da Europa. Não vai ser possível viver assim muito mais tempo, sob pena de deixar desfazer a Europa lentamente. A chanceler enfrenta eleições em Setembro e essa é uma oportunidade única de testar a sua coragem para convencer os alemães de que a Europa lhes exige sacrifícios, justamente porque é fundamental para o futuro da Alemanha. Dirão os mais cépticos que nada até agora nos convence de que essa mudança possa acontecer em Berlim. Tudo depende da dimensão do susto que a elite alemã apanhou com a iminência de um tremendo desastre. Até o Wall Street Journal sublinha esta dimensão indispensável ao sucesso de Macron e, consequentemente, a um futuro mais promissor para a Europa.
“Para conseguir o que quer, Macron precisa que a potência económica dominante na Europa, a Alemanha, aceite repensar alguma coisa”. A questão, prossegue o jornal, “é que o que está em causa é tão fundamental para a chanceler Angela Merkel como para o Presidente francês” ” Ou seja, a França continua a ser uma peça determinante para o interesse alemão e o risco de perdê-la nunca foi tão evidente. Não é só na Europa que Berlim vê os pilares da sua relação com o mundo abanar. Trump põe em causa a relação transatlântica. Putin constitui uma ameaça que a Europa deixou de poder ignorar. Perder a França seria o risco de uma deriva solitária num mundo em que as grandes potências não democráticas se afirmam cada vez mais, pondo em causa a ordem liberal ocidental, fundamental para a prosperidade e a estabilidade na Alemanha. Conseguirá Merkel responder ao desafio? Será possível a Macron levar a cabo as reformas que provem a sua credibilidade face à Alemanha? Não há certezas, naturalmente. Mas a responsabilidade não cabe toda a Paris. Basta que a chanceler entenda que tem uma oportunidade de deixar como herança uma Europa que venceu a sua crise existencial, que restabeleceu o vigor das suas democracias, que quer continuar unida e que não ficará à margem de um mundo novo e perigoso que exige dela muito mais. “As tarefas de reformar em casa e na Europa estão ligadas”, escreve Gideon Rachman no Financial Times. “Se não for dada alguma margem de manobra à França e à Itália, o resultado arrisca-se a ser desastroso para a Alemanha.”
4. A outra mensagem da França foi direita para Moscovo, que aliás não faz segredo do seu descontentamento. Emmanuel Macron era o único candidato sem qualquer sinal de cedência em relação a Putin. Como escreve o Monde, citando a imprensa russa mais próxima do Kremlin, “vistas de Moscovo, foi Merkel que ganhou” as eleições. O resto é conhecido: “Macron é a marionete dos Rothschild”, escrevem os jornais, ecoando o que Le Pen e Mélanchon não se cansaram de dizer.
Donald Trump, numa montanha russa alucinante para pôr a funcionar a sua presidência (sem grande êxito, diga-se de passagem) também não terá gostado do desfecho, mesmo que as suas diatribes contra a Europa estejam a descer de tom. Não tentou sequer esconder a sua preferência por Marine. Macron será um aliado difícil, mesmo que mantenha o empenho na luta contra o Daesh na Síria e no Iraque.
Theresa May pode contar com uma posição dura de Macron, que já disse que nunca permitirá que o Reino Unido se transforme num gigantesco paraíso fiscal às portas do Mercado Único. Algumas das suas ideias para regular a globalização colidem com as expectativas britânicas para a negociação da saída. De resto, do lado de lá da Mancha, os nostálgicos do New Labour não disfarçam uma certa inveja.
5. Macron promete reformar a França e retirá-la do seu torpor económico. Terá de ir mais longe, vencendo a malaise persistente de um país que se viu destituído da sua antiga influência europeia, que se vê remetido para segundo plano pela Alemanha, cuja cultura política sempre deu ao Estado um papel fundamental, mesmo que hoje essa receita esteja posta em causa pelas condições da globalização económica e pelas mudanças profundas provocadas nas sociedades mais desenvolvidas, a que não corresponde uma ordem politica coerente. Que reformas? As de Gerhard Schroeder? Provavelmente, mas à francesa. As “doenças” são conhecidas. Vai ser preciso encontrar novos equilíbrios. Mas estamos a falar da quinta (ou sexta, em disputa com o Reino Unido) economia do mundo, que produz centrais nucleares, que compete com a Boeing no fabrico dos grandes aviões que o mundo utiliza, que produz armamento sofisticado e detém a maior indústria do luxo à escala mundial ou a industria gourmet mais reputada do mundo. E que ainda dispõe de um sistema de educação não universitária do melhor que há e que lhe garantia há quinze anos uma taxa de produtividade superior à alemã e uma das mais altas do mundo, mesmo que à custa de um desemprego sempre demasiado elevado. Deixou-se ficar para trás enquanto a Alemanha se adaptava. Tem todas as condições para recuperar.