Portugal está a deixar refugiados sem estatuto e sem direitos
País acolheu mais de 1200 no último ano e meio e até agora só deu a 64 o estatuto de refugiado. Sem ele não conseguem refazer a vida conseguindo emprego para as suas qualificações e reunir a família cá.
O iraquiano Mustafa al-Sabee é um dos muitos refugiados que chegaram a Portugal através do programa de recolocação da Agenda Europeia para a Migração, na perspectiva de receber protecção internacional ou o estatuto de refugiado.
E está entre as mais de mil pessoas que não obtiveram esse estatuto que lhe confere o direito de residência por três ou cinco anos, apesar de terem vindo através desse programa europeu destinado a pessoas com “necessidade clara de protecção”, de acordo com as regras da Comissão Europeia. Esse estatuto de refugiado ou de protecção internacional permitir-lhes-ia reunificarem a família nuclear (em muitos casos separada) e refazerem a sua vida mais facilmente arranjando um trabalho que corresponda às suas qualificações.
Porém, entre os 1256 que até agora chegaram vindos da Grécia e da Itália, ao longo dos últimos 18 meses, apenas “64 já obtiveram o estatuto de protecção internacional”, referiu o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) em respostas enviadas por email. Ou seja: 5% do total. Os restantes 1192 (95%) são portadores de um documento de residência provisória renovável de seis em seis meses e estão temporariamente legalizados. Muitos têm empregos não qualificados ou temporários.
Mustafa, com 30 anos, não escolheu Portugal. Na lista de oito países para possíveis destinos tinha a Bélgica (onde tem um primo), a Alemanha (onde vivem familiares mais afastados), Finlândia, França ou a Dinamarca, entre outros. Mas foi Portugal, que no último ano se destacou como um dos países que mais refugiados receberam através do programa de recolocação, o país apresentado como estando disponível para o receber. E também para acolher Hayder Manoor al-Rubaye, iraquiano de 45 anos (que chegou a Portugal no mesmo grupo de Mustafa). O vazio é pleno para este pai de quatro filhos, que desde o dia em que, na Grécia, lhe disseram que Portugal o escolhera, sonha com a possibilidade de reunir a família: a mulher, professora como ele, e os quatro filhos. A partir do dia em que aterraram no aeroporto de Lisboa nada foi como haviam imaginado na Grécia quando a organização Braxis International lhes disse que Portugal os queria acolher.
O SEF explica que “a duração [habitual] do procedimento até à concessão do estatuto de protecção internacional é de seis meses, contados a partir da data de chegada a Portugal, podendo ser prorrogado em casos de especial complexidade”.
O que explica então que esses seis meses – em muitos casos – estejam a ser ultrapassados? “No caso dos requerentes recolocados, o processo tem tido dificuldade acrescida devido à falta de intérpretes qualificados nas línguas faladas pelos requerentes, designadamente o árabe. Para além disto, verifica-se que uma parte dos requerentes não comparece quando solicitado, obrigando a novas notificações de comparência, ficando nestes casos o processo parado por motivo imputável ao requerente”, responde o SEF.
"Asilo não é lotaria"
Este ano, até 1 de Março, tinham chegado a Portugal mil refugiados no âmbito da recolocação. O primeiro grupo de 24 pessoas chegou em Dezembro de 2015 e desde então centenas foram chegando, alguns dos quais nas últimas semanas. Dezenas foram deixando Portugal, para tentar a sorte noutros países como a Alemanha, a França ou a Suécia. Essas situações existem, confirmaram o SEF e o gabinete de Eduardo Cabrita, ministro-adjunto do primeiro-ministro, que não adiantam os números dessas partidas.
Na sua página sobre Migração e Administração Interna, a Comissão Europeia indica expressamente que "o asilo não pode ser uma lotaria." E estabelece que "os Estados-membros partilham uma responsabilidade de acolher os requerentes de asilo de forma digna, garantindo que são tratados de forma justa e que os seus processos são examinados com base em regras uniformes."
Quando Mustafa e Hayder chegaram a Portugal em 7 de Março de 2016, receberam um cartão de autorização provisória de residência até Setembro desse ano, renovado uma primeira vez em Março de 2017 e uma segunda vez em Abril. Os 18 meses previstos para durar o programa de recolocação terminam em Setembro, sem que tenham garantias de ver a situação legalizada e de terem aquilo que os trouxe para Portugal: a possibilidade, que lhes foi transmitida, de terem o estatuto de refugiado. Têm trabalho – porque o exigiram – no Inatel, onde estão acolhidos. Hayder trabalha na cozinha, Mustafa na lavandaria. Mas sem nenhuma perspectiva.
Mustafa comunica em português com a ajuda de um amigo sírio que completa as respostas em inglês. É este amigo que diz: “Mustafa está muito deprimido, precisa de ajuda”. E Mustafa acrescenta: “Estou muito triste, muito zangado. Um ano e dois meses [sem estatuto de refugiado]. Porquê?”
As perguntas que tem dirigido ao SEF e ao Conselho Português para os Refugiados (CPR), instituição que o acolheu no quadro de um protocolo com o Inatel de Oeiras, não têm resposta. “Ele está a tentar tudo para regularizar a sua situação no longo prazo”, diz o amigo sírio. “Mas dizem-lhe sempre: ‘Não sabemos’; "Tem de esperar”.” Ainda ontem disseram a Mustafa, no CPR, que ele nada podia fazer – a não ser esperar por uma resposta do SEF.
Nas mãos do Daesh
Mustafa saiu da Turquia para a Grécia a 29 de Fevereiro de 2016 e chegou a Portugal no início de Março. Fez travessia numa frágil embarcação, onde também seguia uma bebé de três meses de uma família de qual ficou amigo. O barco ia naufragando no Mar Egeu. Mustafa mostra fotografias – da bebé cuja imagem lhe ficaria sempre gravada na memória, da travessia no barco e da vida passada. Emociona-se.
Quando fugiu de Mossul no norte do Iraque, o seu plano era também salvar o resto da família: mãe, pai, três irmãos e uma irmã. Em 2015, o Daesh ameaçou-os e impôs que um dos dois irmãos mas novos se juntasse ao grupo radical islâmico. Foi em 2015. “Disseram-nos: ‘Precisamos de um deles’”, lembra Mustafa. “Era o recrutamento ou a morte.”
Mustafa, um alfaiate e costureiro bem-sucedido, com uma vasta carteira de clientes a quem vendia fatos, vestidos e todo o tipo de cortinados, tinha dinheiro. Um dia depois do ultimato feito pelo Daesh para capturar um dos irmãos, conseguiu que toda a família saísse de Mossul.
No percurso entre o Iraque e a Síria e depois a Turquia, negociou com traficantes, sírios ou iraquianos, de quem nunca soube o nome, a sua sobrevivência e a dos seus familiares. Os contactos eram feitos à distância, por telefone, às vezes pessoalmente mas sem sempre lhes ver a face.
Pagou 3700 euros para passarem a fronteira para a Síria e outros cinco mil euros para chegarem à Turquia, onde ainda estão a viver o pai e a mãe, ambos com problemas graves de saúde e os irmãos, um dos quais com uma deficiência por ter nascido prematuro durante um bombardeamento das forças norte-americanas nos anos 1990.
Ammar, um iraquiano de 30 anos, também não sabe como sobreviveu, primeiro às perseguições do Daesh no Iraque e depois aos perigos extremos que ele e o irmão com 19 anos, Adam, um estudante do 3.º ano do curso de Medicina, correram por onde passaram, em países em conflito, entregues a milícias ou onde polícias se misturam com contrabandistas para extorquir dinheiro aos refugiados. “Ainda não acredito que estamos vivos”, diz com o olhar sem brilho. “Não acredito em nada. Na nossa sobrevivência, na nossa permanência em Portugal, na Europa dos direitos humanos. Nada disso existe. Tudo é irreal para mim. Preciso de recuperar a minha humanidade, que perdi no Iraque, no longo e difícil percurso e agora aqui, em Portugal. Preciso de documentos que me garantam protecção e direitos.”
A irmã que ainda vive em Mossul diz-lhes que os pais estão bem, mas não acreditam. A última vez que viram o pai foi em 2014. Não sabem da mãe desde 2015, quando deixaram o país.
Incerteza do presente
Ainda na Grécia, Portugal foi-lhes apresentado como o país que os poderia acolher. Antes de virem receberam um folheto do SEF com duas folhas escritas em árabe, nas quais a principal mensagem é: “Um novo começo.” Adam esclarece que tudo o que querem é documentos para poderem refazer a vida, trabalhar.
Isso imaginou Mouna (nome fictício) que fugiu de Alepo, na Síria. Teve medo? “Nunca”, diz a jovem de 30 anos rindo sobre os riscos da viagem por terra e depois por mar “num barco de borracha”. É a incerteza do presente que mais a assusta. Ela estuda numa universidade, o irmão frequenta a escola e a mãe tem um trabalho temporário.
Têm casa através de uma das associações anfitriãs da Plataforma de Apoio aos Refugiados. Mas falta-lhes o reconhecimento do estatuto de protecção internacional, que permitiria ao pai reencontrá-las em Portugal. No SEF deram-lhes uma primeira autorização provisória de seis meses, renovada em Março deste ano. Prometeram chamá-la em Setembro. Na inquietação diária em que Mouna vive, as promessas deixaram de fazer sentido.