Um "jacksoniano", não um "jeffersoniano"
Em um dos mais estimulantes livros sobre a política externa dos EUA, intitulado Special Providence. American Foreign Policy and How it Changed the World, Walter Russell Mead identifica quatro grandes escolas de pensamento: os “hamiltonianos”, herdeiros de Alexander Hamilton, defensores do envolvimento da América no exterior de forma a integrá-la na economia mundial; os “wilsonianos”, adeptos das ideias de Woodrow Wilson, para quem os Estados Unidos têm a obrigação moral e o interesse em espalhar os seus valores democráticos e sociais internacionalmente; os “jeffersonianos”, seguidores de Thomas Jefferson, muito cépticos quanto ao envolvimento do país no mundo, desde logo sob a forma de alianças, e crentes de que a sua missão não passa por espalhar a democracia no exterior, mas antes por defendê-la e aperfeiçoá-la no interior; e os “jacksonianos”, filhos de Andrew Jackson, que dão prioridade absoluta à segurança física e económica do povo americano e defendem que a América não se deve envolver em conflitos externos, mas quando o faz – em resposta a um perigo iminente ou a uma agressão – deve visar uma vitória esmagadora.
Donald Trump foi eleito Presidente dos Estados Unidos com a promessa de colocar “A América Primeiro”. Porém, pouco tempo depois de tomar posse, bombardeou a Síria, o Afeganistão e escalou a tensão com a Coreia do Norte até ao ponto de afirmar que a opção militar está em aberto. Muitos viram nestas decisões um improviso, ou uma mudança de posição, mas Trump é acima de tudo um “jacksoniano” e uma compreensão mais aprofundada da visão de política externa destes demonstra que não há nada de contraditório entre a sua ideia de que “os Estados, como as famílias, devem tratar de si próprios” e as recentes demonstrações de força no exterior.
Como escreveu Mead, embora muitos vejam os “jacksonianos” como isolacionistas ignorantes, a sua concepção de relações internacionais está intimamente ligada ao realismo clássico. Para eles, os Estados coexistem num mundo hobbesiano, violento e anárquico, constituído por unidades egoístas, e os EUA têm de estar vigilantes, fortemente armados e disponíveis para usar a força no exterior — incluindo fazer guerras preventivas, se necessário – sempre que os seus interesses estão postos em causa. Os “jacksonianos” são mesmo muito belicosos quando consideram que o interesse nacional está ameaçado, ou quando pensam que a América foi atacada: nesses casos defendem o uso da força colossal, destinada a vitória total.
É certo que eles são muito desconfiados das organizações tipo ONU, da lei internacional e das alianças permanentes, por acharem que são amarras à liberdade de acção do país, tornando-o mais vulnerável e inseguro. Também se opõem à intervenção no exterior por motivos morais, rejeitando, por exemplo, intervenções humanitárias, e indo ao ponto de considerarem a comunidade internacional uma impossibilidade ou mesmo uma “monstruosidade”. Mas não só tudo isto podia ser subscrito por qualquer realista clássico, como não é contraditório com a defesa de um envolvimento internacional, incluindo o uso do poder militar, mesmo que preferencialmente de modo unilateral, sempre que os interesses nacionais estão ameaçados.
A história comprova-o. Os “jacksonianos” defenderam a entrada dos Estados Unidos na I Guerra Mundial depois de terem conhecimento do célebre telegrama Zimmermann – no qual a Alemanha prometia devolver ao México os territórios perdidos na guerra de 1846-1848 – e dos vários ataques a navios americanos por parte dos alemães. O mesmo sucedeu na II Guerra Mundial depois do ataque japonês a Pearl Harbor e da declaração de guerra de Hitler à América. Mais recentemente, a Guerra do Golfo foi popular nos círculos "jacksonianos", por entenderem que a estabilidade do fornecimento de petróleo era um interesse nacional vital. Já a guerra na antiga Jugoslávia foi alvo de duras críticas, por não ser visível para a maioria do povo norte-americano qualquer ameaça concreta aos interesses do país.
Os recentes casos da Coreia do Norte, da Síria e do Afeganistão respeitam a bíblia dos “realistas jacksonianos”. No primeiro, está em causa uma grave e dupla ameaça à segurança dos EUA: a proliferação nuclear e a hipótese de os norte-coreanos desenvolverem um sistema de mísseis balísticos intercontinentais com capacidade de atingir território norte-americano com ogivas nucleares. Na Síria, a grande ameaça advém da posse e uso de armas químicas e biológicas por Estados-párias (isto é, Estados fora-da-lei, que não cumprem as regras e normas da ordem internacional), com o risco acrescido de poderem fornecer esse tipo de armas chamadas de destruição maciça a grupos terroristas. No Afeganistão, trata-se de combater e destruir o Daesh, bem como o islão radical em geral, que a administração Trump considera – mal – ser uma ameaça existencial à América.
Ainda dentro dos mandamentos do livro sagrado dos “jacksonianos”, Donald Trump e a sua equipa não pretendem envolver os Estados Unidos na Síria, no Afeganistão ou mesmo, se possível, num conflito com a Coreia do Norte. O objectivo estratégico consistiu em demonstrar poder de modo a forçar a Rússia e a China a pôr na ordem os seus clientes em Damasco e Pyongyang. Em rigor, foram acções para ser vistas e entendidas em Moscovo e Pequim. De resto, tal corresponde a uma concepção de ordenamento internacional tipicamente realista clássica: o concerto de grandes potências, com as respectivas esferas de influência.
A incompreensão generalizada com que as recentes decisões de Trump foram recebidas radica numa confusão de base sobre a escola de pensamento de política externa dos EUA em que ele se insere e o que esta é. Ele é um “jacksoniano”, não um “jeffersoniano”.
Universidade Nova e IPRI-UNL