Marlene Monteiro Freitas: mensageira de Dionísio
Figuras em situações de delírio, metamorfose e desdobramento, a força incontrolável da música: eis o encontro entre a coreógrafa cabo-verdiana e as Bacantes de Eurípedes.
Soam os trompetes e rufam os tamboris no Teatro Nacional D. Maria II. Do crescendo rítmico do Bolero de Ravel à intensidade de Berio, do sopro lânguido de L’après-midi d’un faune de Stravinsky à sensualidade das mornas cabo-verdianas — são ecos de As Bacantes. Prelúdio para uma purga, a leitura coreográfica que a coreógrafa e bailarina cabo-verdiana Marlene Monteiro Freitas propõe da tragédia de Eurípides.
Com estreia mundial no D. Maria II, na quinta-feira, onde permanecerá em cena até ao final mês, a peça seguirá para alguns dos festivais europeus de maior relevo, como o Kunstenfestivaldesarts, em Bruxelas, e poderá ser vista também, entre outros, no Rivoli Teatro Municipal do Porto, em Junho, no FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica.
Ao desafio lançado por Tiago Rodrigues, director do Teatro Nacional D. Maria II, de coreografar a partir de uma tragédia grega, sugerindo para o efeito a Medeia de Eurípides, Marlene responde com a proposta de coreografar As Bacantes porque, como refere, “trata-se da tragédia onde a polaridade entre racional e irracional é mais marcada e, por não a compreender inteiramente”, impôs-se assim o desejo e a curiosidade de trabalhá-la.
É ainda a tragédia onde figura o desvario de uma mãe, Agave, que em estado de delírio sob as forças de Dionísio mata o seu próprio filho Penteu, convencida de se tratar de uma presa selvagem. E é no desfecho da tragédia, no confronto desta mãe em delírio perante o seu próprio pai Cadmo, rei de Tebas, aquele que lhe dá a ver o seu acto irracional, que Marlene encontrou um dos momentos mais marcantes para esta criação.
Não nos surpreende que estas sejam algumas das premissas para estas Bacantes, de Marlene Monteiro Freitas, coreógrafa cuja obra se tem pautado pela “intensidade, estranheza e abertura”. A curiosidade pelo incompreensível e pelo irracional, e o desejo de construir situações em palco que escapam a linearidade sequencial da narrativa, e não se prestam a uma leitura da ordem da linguagem, mas da montagem onírica da imaginação são algumas das forças coreográficas de Marlene. Como tal, são obras plenas de contradições, de opostos em tensão, de forças que escapam a uma lógica do sentido. “É um pouco como nos sonhos”, refere, “em que as imagens se podem suceder de forma ilógica, contraditória, estranha, deslocando... com os estados emocionais que lhes são próprios”.
Nas suas propostas dissolve-se a lógica de causa-efeito. A criação alicerça-se em pesquisas de referências que a vão informando. Da literatura, às imagens, às composições musicais, ao cinema, entre outros, a coreógrafa vai construindo uma montagem viva de elementos, qual atlas imagético-sonoro, que acompanha e contamina a criação. Esse reverbera depois no corpo, no movimento e na vida da própria obra, para a qual Marlene nem sempre encontra todas as respostas.
Assim, muito embora tenha ancorado a criação da peça no texto original da tragédia, não o incorpora na peça. Porque “a dança é de outra ordem do teatro”, lembra, esta peça não se trata de uma encenação teatral, mas de uma leitura coreográfica da tragédia grega As Bacantes, de Eurípides.
É a tragédia que propõe uma ficção a partir de rituais dionisíacos que eram praticados na antiga Grécia. Rituais extáticos e de delírio em honra do deus Dionísio, que não só evidenciam o elemento irracional no comportamento humano, como expunham o modo como os humanos, incautos, eram castigados se não reconhecesse a superioridade dos deuses.
Dionísio era a divindade da fertilidade agreste, da hera e da vinha. Deus do vinho, e com ele da embriaguez e das alterações da consciência (para os Gregos vitais para suportar as agruras da vida). Era ainda o deus da máscara e do teatro. O estrangeiro de figura andrógina que vinha de fora, o deus da epifania que encarnava o animal de chifres, e que trazia consigo os seus mistérios, os cortejos chamados tíasos dionisíacos.
Música e mito trágico
Não se tratavam de fenómenos individuais, mas de manifestações colectivas que contagiavam aqueles por quem passavam, não admitindo a passividade da contemplação. As Bacantes, ou Ménades, eram as figuras que o seguiam, femininas ou travestidas, empunhando os tirsos, bastões com heras e poderes divinos, em plena comunhão não só com o deus mas também com a natureza.
Nesta tragédia, Dionísio, o único deus filho de uma mãe humana, vinga aqueles que não o reconhecem como divino e os que resistem às suas forças incontroláveis com castigos imponderáveis.
Dionísio propunha um outro modo de sabedoria que não a sophia sensata e racional dos filósofos atenienses, criticada a seu tempo por Nietzsche. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche propôs que a verdadeira tragédia grega deveria reflectir as emoções humanas mais profundas, e não ser sacrificada pelas tendências do racionalismo e da autoconfiança optimista de que Sócrates e seus seguidores, onde incluía também Eurípides, seriam um exemplo. Para Nietzsche, toda a criação artística surgia do impulso complementar das forças apolínea e dionisíaca. Se a generalidade da obra de Eurípides foi recebida como confirmação do declínio moral e artístico da sociedade ateniense, privilegiando o intelectualismo em detrimento do instinto artístico, As Bacantes, em fim de carreira, terá sido a sua obra redentora que recupera a relevância de Dionísio.
“A tragédia nasceu do génio da música”, continua Nietzsche, ideia recuperada por Marlene Monteiro Freitas, que coloca a música em estreita relação com As Bacantes, partindo da imagem inicial de uma orquestra de música para a criação desta peça.
Assim, treze músicos e bailarinos em palco trabalham juntos a partir deste mote musical. São eles Andreas Merk, Betty Tchomanga, Cookie, Cláudio Silva, Flora Détraz, Gonçalo Marques, Guillaume Gardey de Soos, Johannes Krieger, Lander Patrick, Miguel Filipe, Tomás Moital, Yaw Tembe e Marlene Monteiro Freitas. Quase todos próximos da coreógrafa, recordamos alguns das suas criações anteriores, como em paraíso – colecção privada (2012), de marfim e de carne – as estátuas também sofrem (2014) e no magnífico dueto expressionista com Andreas Merk, em Jaguar (2015).
“Música e mito trágico”, referiu Nietzsche, “são expressões da faculdade dionisíaca de um povo, e são inseparáveis”. Ou, como nos lembra Marlene, “a música pode tocar-nos de modos diversos, e em partes físicas e sentidos diferentes”.
A propósito do trompete e da escolha dos instrumentos, nota Marlene: “este é o instrumento mais próximo da voz humana, da loucura, do sopro, do vento...”. Além disso, trata-se de um objecto com uma relação íntima com o músico através da boca e da respiração, combinando forças tão opostas que vão desde “a tristeza e o fúnebre, à alegria, ao estridente e ao carnavalesco”.
Curiosamente, e ainda sobre a composição musical, As Bacantes é a única tragédia grega onde há referência a instrumentos de percussão, os tamboris.
O rosto, a máscara
A peça desenrola-se com figuras em situações de delírio, metamorfose e desdobramento, expondo o confronto e a tensão entre forças incontroláveis. A Marlene interessam-lhe não as dicotomias e as partições, mas “a circularidade de opostos, a tensão de forças que rasgam o espectável mas que inexplicavelmente se complementam”.
Tanto os trompetes, como as estantes de orquestra metamorfoseiam-se, e prestam-se a usos e modos vários, ganhando vida própria. Os trompetes tornam-se narizes, flautas... e as estantes lembram os míticos tirsos dos rituais dionisíacos. Podemos falar de animismo e antropomorfismo, mas também de uma relação com a robótica, neste encontro entre os limites do homem com os objectos, a máquina e o cartoon. A liberdade a que se presta o antropomorfismo dos objectos, assim como o clownesco e o cartoon, permite escapar à lógica da causa-efeito, e tornar o improvável possível. Do mesmo modo, o recurso ao instrumento do deus ex machina, o artifício teatral que surge sem sentido nem contexto, permite fazer do teatro esse lugar de onde se pode ver o inesperado.
E retomando esta noção etimológica do teatro—como lugar a partir do qual se vê—também para estas Bacantes o olhar, o rosto e, com ele, a máscara adquirem um relevo particular.
O rosto como lugar de identificação do sujeito tem assumido desde sempre relevância em toda a obra da Marlene, nomeadamente, através da exploração dos olhos e da boca, e dos esgares de destabilização da face, a zona por excelência de reconhecimento (e metamorfose) do sujeito.
Dionísio, por sua vez, era também o deus da máscara e do teatro. A divindade que entrava em contacto com os seus seguidores através do olhar.
O modo como os gregos representavam as figuras pictoricamente nos vasos, na pedra, ou no teatro, tornou-se fulcral para a coreógrafa pensar a organização das figuras no espaço, a relação entre elas e com os espectadores.
E para esta pesquisa, Marlene assinala a obra da historiadora Françoise Frontisi-Ducroux como uma referência na sua investigação, nomeadamente, o seu estudo sobre a relação muito particular entre máscara e rosto na Grécia antiga. A ideia de força que Frontisi-Ducroux propõe é o facto de a máscara na cultura grega não ocultar a face de quem a carrega mas, pelo contrário, servir para a revelar e identificar.
Em grego antigo, a mesma palavra proposon significa máscara e rosto. A partir deste sentido dúplice e ambivalente, Frontisi-Ducroux explora a identidade na cultura grega, a relação com o outro e a representação artística da mesma. A máscara não esconde o rosto do ator trágico. A máscara é o rosto, a máscara é o deus, o que altera significativamente o modo como nós encaramos hoje máscara e o lugar do ator na representação dramática. Isso libertou a coreógrafa de filtros: “o que vemos é aquilo que é”, diz-nos Marlene.
Além disso, as figuras gregas eram representadas em posições diferentes consoante a situação em que se encontravam. Figuras de guerra, de morte, de amor ou de embriaguez eram geralmente representadas em posição frontal, interpelando em relação direta o observador. Figuras em diálogo, ou em estado de sono, era representadas em perfil, pois não estavam em relação direta com o espectador. Este ênfase do olhar e da expressividade do rosto, levaram a coreógrafa a concentrar a coreografia no proscénio, na parte frontal do palco, mais próxima do público.
E serão muitas outras as referências que informam directa ou indirectamente este encontro coreográfico entre Marlene Monteiro Freitas e As Bacantes.
Desde as tragédias contemporâneas de barcos que se afundam, aviões que caem, à materialidade do plástico que invade os oceanos e que reconhecemos nos figurinos, às peças dos legos, aos cartoons, às diversas representações de Pietás, de mães que matam os seus filhos, ou que os fazem nascer.
O excerto do documentário de Kazuo Hara que é projectado durante a coreografia, e que mostra a cena de um parto da sua ex-mulher, que decide ter o filho sem qualquer interferência nem ajuda é um desses exemplos extremos e de grande intensidade na peça. A exposição da animalidade da natureza humana, daquilo que, uma vez mais, escapa à ordem da linguagem e da razão, ao entendimento científico e antropocêntrico do mundo, também este, mais-do-que-humano. Relações e polaridades extremas que conectam a morte à vida, o nascimento à perda, e exploram a dinâmica circular entre estas.
Certamente que As Bacantes. Prelúdio para uma purga, de Marlene Monteiro Freitas falará por si própria. Como nos adverte a coreógrafa, “daqui eu tenho de ir para ali, e entre estas duas coisas há um mundo que eu ainda desconheço”.