Cem anos depois, Almada Negreiros volta a falar aos portugueses sem qualidades
Projecto P! é o nome do programa que nos próximos cinco dias se propõe reflectir sobre a performance em Portugal. O pretexto é a conferência que Almada deu em Lisboa há 100 anos, com o seu Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX.
A sala estaria bastante composta, com umas 200 pessoas na assistência. Guilherme de Santa Rita ocupava um camarote e funcionava como uma espécie de maestro para quem de vez em quando Almada Negreiros olhava procurando um sinal de aprovação. Aquela conferência, haveria de descobrir em breve a plateia do então Teatro República (actual S. Luiz), não seria como as outras.
Estava-se em Abril de 1917 e Lisboa confrontava-se com esta janela para o futurismo de Filippo Tommaso Marinetti (1876-1944) pela mão de dois artistas habituados a desafiar convenções e a provocar, publicando manifestos, saltando por cima das mesas na Brasileira do Chiado ou descendo a rua a deitar a língua de fora a quem passasse.
É precisamente tomando como pretexto o centenário da primeira conferência futurista de Almada Negreiros (1893-1970), momento em que o artista leu o seu Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX e outros textos, que a associação Per Form Ativa organiza agora um programa com curadoria de Ana Pais, Pedro Rocha e Levina Valentim e que tem por objectivo questionar o papel que a performance assume hoje no espaço público.
O Projecto P! começa hoje com uma conferência internacional na Fundação Calouste Gulbenkian e inclui espectáculos, debates e instalações espalhados por vários espaços da cidade até sexta-feira, dia em que se festeja, precisamente, o centenário da conferência de Almada e em que o S. Luiz recebe Reinvenções, conjunto de 14 intervenções que a evocam a partir da poesia, da dança, do teatro, da música e das artes visuais, feitas por criadores como Sónia Baptista, Raquel André, António Olaio e Ana Borralho & João Galante, entre outros.
A ideia, explicam os organizadores, é reflectir sobre a performance em Portugal, desde aqueles que entendem ser os momentos fundadores da década de 1910, a do futurismo e dos primeiros anos da República, à actualidade, passando pelas experiências dos anos 60 e 70, centradas na poesia e na música experimentais, e pela abertura e diversidade das décadas de 1990 e 2000, em que as atenções parecem ter-se concentrado na sua articulação com o teatro e, sobretudo, com a dança.
Artistas e conferencistas portugueses e internacionais juntam-se para discutir as relações que este genéro artístico mantém com o público e o privado, com o corpo e a memória, tudo partindo do princípio de que se pode olhar para a sessão de Almada no Teatro República como algo iniciático.
A Mariana Pinto dos Santos, historiadora de arte que tem dedicado boa parte da sua investigação à vida e à obra de Almada, sendo a comissária da exposição que a Gulbenkian lhe consagra até 5 de Junho (José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno), não lhe parece produtivo andar à procura de um momento original, sobretudo quando a performance só surge como género artístico muito mais tarde, na década de 1960: “É claro que há no Almada, no Santa Rita [1889-1918] e nesta conferência em particular algo de profundamente diferente, mas acho que não precisamos de lhe chamar ‘performance’ para justificar a sua importância. Não é por acaso que um artista como o Ernesto de Sousa, figura central na nossa arte experimental, encontra no Almada um antecedente.”
Ernesto de Sousa, recorde-se, filma o artista intensamente e deixa-se fascinar pelo seu universo múltiplo, pelo seu processo criativo e pela sua acção enquanto criador sempre disposto a participar no debate público ou mesmo a desencadeá-lo. Com ele e a partir dele faz Almada, Um Nome de Guerra (1969-1972), um filme-instalação com música original de Jorge Peixinho a que a historiadora de arte prefere chamar um “antifilme”.
Mariana Pinto dos Santos, que participa num dos debates a propósito do centenário na Casa Fernando Pessoa (11 de Abril, às 18h30), instituição que neste Projecto P! se junta à Gulbenkian, ao São Luiz, ao Pólo Cultural Gaivotas, ao Museu do Chiado e ao Teatro Municipal Maria Matos para acolher uma série de iniciativas, explica por que razão podemos olhar, seja de que forma for, para a conferência futurista como um marco: “Ela é o reflexo de uma nova maneira de estar, de um novo movimento e é feita por dois artistas que querem comunicar, impor, uma mudança. O que lá se passou exactamente, apesar dos muitos relatos que houve na imprensa a descrevê-la e a chamar-lhes, entre outras coisas, malucos, nós não sabemos. Aconteceu e pronto. Como na performance, tudo aquilo foi único e perdeu-se.”
A violência nas palavras
Naquela tarde de 14 de Abril de 1917, Almada tem 22 anos e veste um fato-macaco que lembra o de certos operários fabris ou que estabelece de imediato a ligação a “uma ideia de homem-máquina ou do homem enquanto peça de uma máquina”. Os textos que lê na conferência, e que depois publica na revista Portugal Futurista, cujo primeiro e único número sai sete meses mais tarde e é apreendido em seguida, querem agitar as consciências, chamando ao mesmo tempo a atenção para uma nova geração de criadores que é a sua e em que faz questão de destacar Guilherme de Santa Rita.
“Reduzida a plateia à sua inexpressão natural tive a glória de apresentar o futurista Santa-Rita-Pintor que o público recebeu com uma ovação unânime”, diz na breve introdução em que descreve o ambiente da sala e que sai junto aos textos lidos na Portugal Futurista, publicação em que Santa Rita volta a ser o mestre de cerimónias. A plateia, que brindara Almada com uma “tremenda pateada” mal entrou em palco e uma “calorosíssima salva de palmas”, acostumada a “conferências exclusivamente literárias e pedantes”, chocou-se, como seria aliás de esperar, com a “virilidade” das suas afirmações.
A violência das palavras que atravessa o seu Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX, no caso de Almada sempre proferidas num “registo humorístico, irónico”, vem de Marinetti, já que o texto assume claramente a filiação no Manifesto Futurista do escritor e ideólogo italiano (publicado em Paris em 1909 e traduzido em Portugal no mesmo ano).
“A guerra serve para mostrar os fortes mas salva os fracos”, escreve o artista, “Portugal é um país de fracos, Portugal é um país decadente”.
A guerra é aqui usada como uma metáfora da destruição total do passado, defende Mariana Pinto dos Santos, quer seja ele artístico, literário ou, no sentido mais amplo, cultural. “É a guerra que apaga todos os ideais românticos e outras fórmulas literárias ensinando que a única alegria é a vida. É a guerra que restitui às raças toda a virilidade apagada pelas masturbações raffinées das velhas civilizações”, continua Almada.
O que eles querem é fundar o novo, o moderno, e o artista funciona aqui como uma “metralhadora de palavras” que quer abanar as pessoas, diz a historiadora de arte. “É por isso que escreve coisas como ‘é preciso educar a mulher portuguesa na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens’ no Ultimatum e a seguir lê, na mesma conferência, o Manifesto Futurista da Luxúria, da [artista francesa] Valentine de Saint-Point [1875-1953], um texto que tem várias referências à sexualidade feminina e à erotização da mulher, que faz com que muitas mulheres abandonem a sala.”
O grande encenador
Este lado provocador, que partilha com Santa Rita, principal rosto do futurismo em Portugal, é um dos elementos que mais atrai o jornalista João Macdonald, que está precisamente a escrever uma biografia sobre este pintor que morreu em 1918 e cuja obra praticamente desapareceu a seu pedido (sairá na Abysmo de João Paulo Cotrim em data a anunciar e promete trazer muitas novidades). “Há um lado de grande encenação no que os dois fazem, mas não é só para chocar que se passeiam pelo Chiado de cabeça e sobrancelhas rapadas. É claro que eles querem provocar uma reacção, mas querem sobretudo chamar a atenção para o que estão a escrever, para o que estão a pintar ou a dizer”, explica Macdonald, que também assina um dos 11 ensaios do livro Performance na Esfera Pública, lançado hoje às 18h30, na Gulbenkian (ver texto ao lado).
Almada e Santa Rita querem que as pessoas leiam, vejam, ouçam, mas é o segundo que funciona como o “grande encenador”. “O Santa Rita tem um lado absolutamente performático desde criança, todo o seu comportamento parte do facto de ele ser um provocador contínuo”, diz. É ele que mais interpela o público durante a conferência futurista do Teatro República, é ele que finge que estão sentadas na plateia várias peronsalidades públicas para que a elas se possa dirigir.
O que Santa Rita faria daí para a frente com toda essa capacidade para inquietar não se sabe — morreu no ano seguinte, aos 28 anos, com tuberculose — mas o que Almada faz até 1970 é sobejamente conhecido e prova que ele levou longe esta prática de juventude. Promove conferências até ao fim da vida, lembra Pinto dos Santos, actualizando constantemente os seus manifestos e fazendo sempre uso do lado teatral, absurdo, desconcertante.
“A ironia é uma arma em Almada desde o início, essa inclinação para o humor, para valorizar o que nos faz rir ou sorrir. É um instrumento que ele usa de forma muito inteligente. Eu acho que é impossível ficar imune à maneira como ele fecha o Ultimatum às Gerações Portuguesas”, um texto que ele lê quando o país já entrou na Primeira Grande Guerra, com tropas absolutamente impreparadas, mas ainda não se deu a célebre Batalha de La Lys, que irá impor pesadas baixas ao Corpo Expedicionário Português.
“O povo completo”, escreve Almada, “será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, portugueses, só vos faltam as qualidades”.
Notícia corrigida às 10h15: a curadoria do projecto não é apenas de Ana Pais, é também de Pedro Rocha e Levina Valentim.