O vanguardista ingénuo
Surrealista antes de Breton, futurista por intuição, Almada foi um grande escritor que se diluiu no artista total que inventou para si próprio.
Poeta, ficcionista, conferencista, ensaísta, desenhador, pintor, artista gráfico, muralista, ceramista, vitralista, cenógrafo, coreógrafo, bailarino, performer, geómetra, Almada foi um caso ímpar de energia criativa, de experimentação constante e de capacidade de atravessar e dissipar todas as fronteiras disciplinares. Não surpreende, por isso, que o seu crescente reconhecimento como figura central do modernismo português passe muito pela valorização desse artista multifacetado, performativo, vanguardista. Ou seja, pela sua particular “maneira de ser moderno”, para evocar o título da exposição comissariada por Mariana Pinto dos Santos.
Mas esta justa consideração do artista integral, perspectiva que Almada seria o primeiro a subscrever, não favorece necessariamente a visibilidade do poderoso escritor que também foi. Se descontarmos o romance Nome de Guerra, escrito em 1925 e publicado em 1938, cuja excepcionalidade na novelística portuguesa do século XX está bem estabelecida, talvez não seja exagero dizer que ainda hoje não existe uma leitura consensual da obra literária de Almada e daqueles que seriam os seus textos canónicos.
É curioso observar, por exemplo, as escolhas da sua poesia propostas por dois leitores tão exigentes como Jorge de Sena e Herberto Helder, o primeiro nas Líricas Portuguesas, em 1958, ainda em vida do autor, e o segundo na antologia Edoi Lelia Doura, em 1985.
Numa selecção que acolhe textos de ostensiva dimensão vanguardista, mas apesar de tudo confinados ao que habitualmente se entende por poesia, Sena escolhe Rondel do Alentejo, dois poemas em prosa retirados da conferência-poema-ensaio A Invenção do Dia Claro (1921), o poema Litoral (1916), e ainda A Cena do Ódio, publicada pela primeira vez na íntegra nesta antologia, quase 40 anos depois de Almada a ter escrito para o malogrado número 3 de Orpheu.
Já Herberto Helder, que numa breve nota introdutória considera Nome de Guerra “um dos apenas três ou quatro romances portugueses deste século que se podem ler sem desbaratos de tempo”, parece considerar que a mais alta poesia do autor está na sua prosa, seja a de ficção, representada pelo texto O Kágado (1921), seja a dessas conferências-performances nas quais Almada foi expondo o seu singularíssimo entendimento da poesia e da arte, e que podem ser vistas como criações poéticas de pleno direito. Assim as terá visto Herberto, que seleccionou Poesia É Criação (1962) e Elogio da Ingenuidade ou As Desventuras da Esperteza Saloia, uma conferência de 1936 em que Almada sistematiza a sua defesa da ingenuidade como condição de uma criação poética genuinamente “pessoal e intransmissível”.
Numa conversa com o Ípsilon centrada no Almada escritor, Fernando Cabral Martins, grande especialista do modernismo português e um dos autores que colabora no catálogo desta exposição, sugere que é o próprio artista que, a partir de dado momento, se vai desenvencilhando do estatuto de escritor. “No âmbito daquilo a que chamamos literatura, ele escreveu tudo muito cedo, incluindo um romance que foi muito apreciado e citado, e isso faz dele um escritor, mas depois vai progressivamente construindo aquele personagem do artista total, que é um artista das palavras, mas também do desenho, do teatro, da performance”, diz Cabral Martins, “e que continua a sê-lo nas conferências, que nele são uma arte completamente própria, uma espécie de forma artística sintética”. Um dos aspectos mais modernos de Almada, defende, é justamente o modo como este “começa desde muito cedo a espatifar todos os limites”, incluindo os da literatura.
O facto de ter sobrevivido várias décadas aos seus principais companheiros de geração, e de ter continuado sempre a procurar, enquanto artista, o seu próprio caminho, evitando a armadilha de se deixar aprisionar nesse momento heróico do primeiro modernismo português, talvez não ajude a que seja imediatamente óbvia a relevância e a contundência vanguardista do que Almada escreveu até aos vinte e poucos anos. Mas é um percurso espantoso, tanto mais que, como salienta Cabral Martins, no final de 1917, quando sai Portugal Futurista, Almada “é o único que ainda não saiu de Portugal”, se descontarmos o seu nascimento em S. Tomé.
Não tem a experiência de Pessoa da cultura inglesa na África do Sul nem acompanhou as vanguardas europeias no seu epicentro parisiense, como Amadeo, Santa-Rita ou Sá-Carneiro. E no entanto, observa Cabral Martins, “apesar de ser um provinciano lisboeta, consegue ser o mais explosivo de todos, é um vanguardista por pura intuição”. Algo que poderia ter sido óbvio ainda mais cedo se A Cena do Ódio - “coisa soberba”, entusiasma-se Sá-Carneiro em carta a Pessoa - tivesse sido publicada em 1915.
O bebé do Orpheu
Mas mesmo se nos cingirmos aos textos que efectivamente publicou até 1917, a lista é suficientemente impressionante. Inclui coisas tão inovadoras e tão diversas como o livro K4 O Quadrado Azul, que edita com Amadeo em Janeiro de 1917, o texto Saltimbancos, redigido numa sedutora prosa cuja fluidez nenhuma pontuação interrompe, ou a novela A Engomadeira, também de 1917, talvez o mais assombroso exemplo dessa “pura intuição” que Cabral Martins lhe atribui. “É de forma muito evidente um texto surrealista que não precisou da doutrina bretoniana”, defende o investigador. O primeiro Manifesto do Surrealismo só será publicado em 1924.
Outro exemplo da produção desse período é o poema vanguardista Litoral, cuja edição original, em formato desdobrável, tem a curiosidade de apresentar uma relação da “obra literária” do autor acrescida desta prevenção: “Todos estes livros devem ser lidos pelos menos duas vezes prós muito inteligentes e daqui pra baixo é sempre a dobrar”.
As melhores coisas que escreveu nesse período “só podem ser comparadas, na sua energia, na sua violência, na sua inventividade, com Álvaro de Campos”, a quem não por acaso, observa Cabral Martins, Almada dedicou A Cena do Ódio.
Sem questionar a evidência de que Pessoa é a figura mais forte da geração que lançou o modernismo em Portugal, o investigador lembra que, na época, “só sai cá para fora uma percentagem mínima” do que escrevia o poeta dos heterónimos, o que permite ao extrovertido Almada, “muito presente emuito influente”, assumir uma “grande centralidade” no movimento.
É este “bebé do Orpheu”, como Pessoa carinhosamente se lhe refere ao dedicar-lhe um exemplar de Mensagem, que aos 24 anos vai assumir praticamente sozinho, com a colaboração um pouco fantasmática de Santa-Rita Pintor, a organização (e boa parte da redacção) de Portugal Futurista, a primeira revista portuguesa propriamente vanguardista, estatuto que, em rigor, a sua antecessora, Orpheu, não podia ainda (nem queria) reivindicar.
Mas Cabral Martins também sublinha que o que há no modernismo português de continuação de tendências anteriores não impede que este “só possa ser entendido à luz da vanguarda”, o que é válido para Orpheu e Portugal Futurista, mas também “para os heterónimos de Pessoa, a prática performativa de Almada e Santa-Rita”, ou mesmo Sá-Carneiro, que “entendido como simbolista não seria nem 5% tão interessante”. É claro que, como ele próprio conclui, “se batermos nessa tecla do vanguardismo que marca o modernismo português, então Almada surge com muita naturalidade como o vanguardista por excelência”.
O que não quer dizer que, como escritor, tenha a estatura de um Pessoa. Pode ser difícil ler a notável e revolucionária Cena do Ódio sem pensar na Ode Marítima, mas a qualidade dos dois poemas não é verdadeiramente comparável. E também não faltará quem coloque a obra poética de Sá-Carneiro acima da sua. Mas essas são batalhas de uma guerra que Almada nunca quis travar. “O maior perigo que corre o ingénuo [é] o de querer ser esperto”, avisa no seu já citado Elogio da Ingenuidade, constatando que a maioria deles “desanima logo de entrada e prefere tricher no jogo de honra, do mérito e do valor”. Não é o seu caso: ele faz parte, sem qualquer dúvida, desses “raríssimos (…) ingénuos que se comprometeram um dia para consigo próprios a não competir neste mundo senão consigo mesmos”.
Talvez essa fidelidade única à sua inspiração pessoal, uma força que o levou do futurismo de 1917 à tentativa de síntese entre arte e ciência que marca os seus trabalhos finais, como o painel Começar, seja afinal a verdadeira marca distintiva do seu génio criador. Como ele próprio afirma, com críptica transparência, em Poesia É Criação, “se um não sabe dizer-se por onde é Poesia, não haverá jamais quem lho diga: Poesia é senão por onde é para cada um”.