Valores Globais em Choque?

A conflitualidade em torno de referências culturais, valores fundamentais e noções morais não é simplisticamente evitável. Infelizmente.

Mulheres muçulmanas são frequentemente condenadas à morte por lapidação (apedrejamento público) devido a crime de adultério, na Ásia do Sul, no Médio Oriente e em África. A lapidação era já repudiada na Bíblia. Este é apenas um exemplo de aplicação fria de penas bárbaras.

Parece-nos óbvio que é tenebrosa a aplicação de uma pena de morte, ainda mais se ela pune em extremo uma situação de adultério e mais ainda se o método aplicado é o de apedrejar a condenada num processo de morte lenta e extremamente sádica. Contudo, por mais óbvio que tudo isto nos pareça no contexto de uma matriz de valores em que nascemos e fomos aculturados, falta-nos a capacidade de compreender que, para povos formatados noutros quadros de valores e noutras culturas, o que é óbvio é bem diferente.

Os valores, as referências morais e a perceção do bem e do mal, do defensável e do condenável, tendem a evoluir com o tempo, não só porque o ordenamento e a codificação de valores se vai reajustando, porque a sensibilidade humana, apesar dos fluxos e refluxos, tende para uma maior rejeição de formas de sofrimento. A civilização cristã gerou a Inquisição, que hoje considera impensável, enquanto europeus trataram povos colonizados com uma brutalidade que hoje lhes repugna.

Mas as culpas do passado em (rigorosamente) nada nos devem diminuir a militância (e a intervenção, se necessário) para impedir situações bárbaras que ferem os nossos valores de humanidade. Esperamos que culturas como a dos radicais e fundamentalistas islâmicos evoluam. Resta saber se estamos dispostos, enquanto falamos elegantemente, a olhar selvajarias constantes, como uma multidão aos risos enquanto apedreja uma mulher despedaçada que cambaleia com ossos fraturados e sangue por todo o corpo, até morrer.

Mas se pressionarmos os iranianos para deixarem de apedrejar mulheres, os extremistas islâmicos para pararem de chacinar “infiéis” em nome de Alá e os bolivianos para não permitirem trabalho infantil que permite a sobrevivência de famílias miseráveis, estaremos, como sempre nos habituámos no último meio milénio, a impor os Nossos valores, a Nossa forma normativa de decidir o que é certo ou errado. Afinal, não vivemos a debitar, com grande ar de intelectualidade esclarecida, que não podemos impor os nossos valores ao resto do mundo e que devemos respeitar as sensibilidades e as opções culturais e as referências morais de outros povos e de outras culturas?

Este problema é realmente muito mais complexo do que gostamos de admitir.

Entendemos que a paz entre os seres humanos, a não-violência e o combate ao sofrimento são referências universais que devem nortear a convivência entre todos os homens, de todas as culturas. Mas para imensos seres humanos essa não é a estrutura dos valores que tomam como base de todo o seu ordenamento social, moral e ético, pois, por exemplo, muitíssimos consideram que é irrelevante valorizar o sofrimento ou a violência porque a única referência válida e universal é, literalmente, a palavra de Deus que no Corão, em algumas passagens, pode parecer preconizar a obrigação de chacinar todos os não-muçulmanos. Para esses, o valor central da existência humana é cumprir a palavra de Deus, como está escrita nesses textos e sem quaisquer interpretações humanas, que por natureza seriam profanas.

Por outras palavras, a certeza de valores e a convicção da moralidade com que condenamos o selvático apedrejamento de mulheres, são paralelas à certeza de valores e à convicção de moralidade com que bin-Laden, o ISIS, Hitler, Mao, Estaline, Pol Pot e os seus milhões de seguidores assumiram com base num conjunto de referências que eram as suas mas que nós rejeitamos frontalmente.

Assim, neste ciclo de raciocínio voltamos sempre à mesma questão que, por mais desagradável que seja para a nossa consciência, teima em confrontar-nos. Não, não é verdade que seja rigorosamente possível respeitarmos piamente os valores de outros povos, para além de determinado limite que os nossos valores nos permitam aceitar. É por isso que, contrariamente aos valores e às culturas de outros, condenamos o apedrejamento destas mulheres, que condenamos costumes como a mutilação genital feminina e que condenamos que se chacinem pessoas por diferenças religiosas.

Como em (quase) tudo, tem que existir bom senso e razoabilidade para, nas diferenças de valores e práticas que nos opõem a outros no mundo, sabermos distinguir as diferenças pouco relevantes, as mais graves que exigem uma condenação enérgica e as fundamentais que são (na perspetiva dos Nossos valores) tão horríveis que não poderemos permitir que persistam, como a barbaridade imposta àquelas mulheres ou um genocídio. Temos que ultrapassar o patético abuso do epíteto de “xenofobia” em situações que não o são. Há valores, comportamentos e situações que, não sendo os que partilhamos, podemos aceitar com flexibilidade, e existem outros que são absolutamente incompatíveis e inaceitáveis na nossa visão de moral e humanidade.

Um dos problemas desta postura reside no facto de outros terem, à luz de sistemas de valores muito diferentes, os seus, também o direito abstrato de pensarem o mesmo dos nossos valores e da nossa sociedade, que entendem (talvez com alguma razão) que, em alguns aspetos, a nossa civilização se torna crescentemente amoral e de, consequentemente, nos confrontarem, inclusive com violência.

Na definição dos Nossos valores gostamos de acreditar que o fazemos com toda a objetividade, mas a verdade é que existe uma vertente de alguma subjetividade. Os “outros” gostam igualmente de acreditar que a sua postura é objetivamente fundamentada.

No final, por mais que tal nos pese, acabamos, em muitos casos, em conflito. Ou abandonamos o nosso hábito de condenar práticas e valores de outros, que nos repugnam, e assim estaremos, realmente, a respeitar os valores de cada povo e de cada cultura, ou, inversamente, abandonamos a utopia absoluta de que respeitamos essas outras opções quando elas ultrapassam determinados limites da Nossa sensibilidade. Os “outros” sentirão o mesmo direito. Isto é, a conflitualidade em torno de referências culturais, valores fundamentais e noções morais não é simplisticamente evitável. Infelizmente.

 

 

 

 

 

 

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