O corpo é tudo para Romeo Castellucci, e agora ele vai penetrá-lo

O criador italiano volta a virar do avesso o património teatral em Júlio César – Peças Soltas, quinta e sexta-feira no Porto. Um espectáculo sobre o poder da linguagem, com vista para o interior das palavras e dos actores.

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Em Júlio César – Peças Soltas vemos o interior das cordas vocais de um actor durante um monólogo em que tem um endoscópio introduzido no nariz e até à garganta LUCA DEL PIA
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Romeo Castellucci põe Júlio César "no corpo de um homem muito velho, uma vítima do poder" LUCA DEL PIA
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GUIDO MENCARI
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LUCA DEL PIA
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O encenador Romeo Castellucci GUIDO MENCARI

O Júlio César de William Shakespeare nas mãos de Romeo Castellucci é um Júlio César em carne viva, que vai até debaixo da pele – e que nos leva para lá com ele. Vemos, literalmente, o interior das cordas vocais de um actor durante um monólogo em que tem um endoscópio introduzido no nariz e até à garganta, com uma câmara ligada a um projector. Vemos também, noutro monólogo, um Marco António sem cordas vocais, interpretado por um homem submetido a uma laringectomia na sequência de um tumor e que comunica através de um orifício na base do pescoço.

Tudo isto é business as usual para o criador italiano, considerado um dos grandes mestres da provocação do teatro europeu, habituado a virar do avesso o património dramático de forma pouco consensual e a pôr em palco corpos normalmente ignorados nas artes performativas (como um Agamémnon com Síndrome de Down, um Apolo sem mãos, uma Clitemnestra com mais de cem quilos). Em Júlio César – Peças Soltas, espectáculo que apresenta quinta e sexta-feira no claustro do Mosteiro São Bento da Vitória, no Porto, no âmbito da BoCA – Biennial of Contemporary Art, Romeo Castellucci quer falar da retórica e da ressonância política das palavras através de “uma intimidade da carne”.

“A voz não é apenas algo imaterial e espiritual. Podemos vê-la aqui, dentro da personagem do senador, com os músculos das cordas vocais a moverem-se, a contraírem-se. E vemos Marco António a discursar sobre as feridas no corpo de Júlio César literalmente através de uma ferida”, diz ao PÚBLICO o encenador, que regressou a Portugal a convite da BoCA para apresentações, conversas e masterclasses no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, e no Teatro Nacional São João, no Porto, depois de em 2016 ter passado pelo São Luiz e pelo Rivoli com a peça Sobre o Conceito do Rosto do Filho de Deus.

Júlio César – Peças Soltas mostra um teatro visto de uma perspectiva visceral, quase anatómica, onde o corpo, sem maquilhagens e rodeios, é o protagonista. “O corpo é tudo. É o máximo que podemos dar ao público”, considera Romeo Castellucci. “Acho que o teatro é sobre essa presença. É a mais carnal das expressões artísticas.” Para o criador italiano, co-fundador da companhia Socìetas Raffaello Sanzio, não se trata de provocar ou chocar, mas de procurar “outra forma de beleza e de triunfo”, que facilmente coloca os espectadores em confronto com os seus próprios tabus e expectativas.

Castellucci não pretende olhar para estes corpos de um modo patológico, mas como matéria dramatúrgica – e, assim, repensar “o lugar da tragédia”, hoje. “Para mim toda a gente, em todos os níveis, pode ser interessante numa moldura dramatúrgica. Gosto de ver no palco corpos que são sinceros, sobretudo nos dias de hoje, em que o corpo está preso numa espécie de controlo.”

O Júlio César nas mãos de Romeo Castellucci é também um Júlio César esquartejado. Este trabalho é uma revisitação de um espectáculo originalmente concebido em 1997, ano em que o encenador veio pela primeira vez a Portugal, também à boleia de Shakespeare (apresentou no festival PoNTI, no Porto, a sua muito própria montagem de Hamlet). “Como diz o título, são partes tiradas do corpo do espectáculo original, mais concretamente dois monólogos [do senador denominado “…vskij” e de Marco António] do primeiro acto, o mais político”, explica.

Nesta cirurgia teatral, a retórica é explorada como uma ferramenta de poder, como “uma arma”, o que está também no coração do texto de Shakespeare e “na antiga filosofia romana”, aponta o encenador. “Cícero e Quintiliano estavam muito cientes do poder das palavras. O discurso político era na altura uma espécie de arte e Marco António foi capaz de mudar o rumo da história de Roma com palavras.” As pontes com a contemporaneidade podem ser várias, mas Castellucci prefere deixar isso para o público. “O meu objectivo não é apontar o dedo a alguém nem fazer uma ilustração. É mais universal, é sobre a natureza humana. Depois cada espectador faz a sua interpretação.”

Interessa-lhe antes decifrar as células e as potencialidades das palavras, o que vem atrás e a seguir a elas. “O meu trabalho tem muito a ver com a linguagem, ou com a batalha com a linguagem”, afirma. E aí é “inevitável” reflectir sobre o poder e a fragilidade humana, temas recorrentes nas suas criações. “Nesta peça vemos também o próprio Júlio César no corpo de um homem muito velho, uma vítima do poder. Ele expressa-se com gestos, sem voz, em silêncio." 

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