Saúde: a hora das “parcerias público-privado-sociais”
Tudo indica que chegou a hora de ensaiar um novo tipo de parceria: as “parcerias público-privado–sociais”, que podem abranger até 4 milhões de portugueses dispostos a adquirir cuidados diferenciados, que o SNS não tem vocação para prestar.
O direito à saúde como pilar estruturante da nossa cidadania social está consagrado constitucionalmente desde 1976.
Sucessivas políticas sociais asseguraram a evolução positiva dos padrões de saúde dos portugueses de que nos orgulhamos a justo título, alavancadas pela ação do Serviço Nacional de Saúde (SNS) do lado da prestação dos cuidados, ainda que outros prestadores “atípicos” do sector público tenham permanecido relevantes: a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).
O sector privado da saúde teve, até ao virar do século, um contributo modesto para esta evolução. Quanto ao sector social das misericórdias e mutualidades, tão importante antes de 1974, a sua oferta foi diminuindo e uma parte dos seus hospitais acabou por ser integrada no SNS.
O início do novo século trouxe novos problemas no domínio da saúde que desafiaram as políticas de saúde seguidas até aí.
O conceito de saúde difundido pela Organização Mundial de Saúde alargara-se ao estado completo de bem-estar físico, mental e social das pessoas e não apenas de ausência de enfermidade. A evolução tecnológica veio alterar a prestação dos cuidados através de inovações a diversos níveis tanto no que diz respeito às tecnologias médicas como à difusão transversal das tecnologias da informação e comunicação.?
A definição ampla de saúde humana sublinhou o aspeto dinâmico do bem-estar, atribuindo à ação no domínio da saúde objetivos renovados que vão além da tradicional garantia de estados clínicos de prevenção e cura da doença. Abrangem agora o nutricionismo, a prática regular de atividades físicas e a wellness, o alívio da dor e sofrimento terminais ou a intervenção cada vez mais significativa das medicinas alternativas e complementares, que alargam a liberdade de escolha do consumidor. O próprio papel dos pacientes, cada vez mais conscientes e informados, altera-se e a orientação tradicional, em que os cuidados de saúde são organizados em torno daquilo que os prestadores consideram unilateralmente ser eficaz e conveniente, foi posta em causa.
Em Portugal, as respostas às novas questões da saúde foram sendo construídas sob a égide das políticas de Correia de Campos e Luís Filipe Pereira que abandonaram o rígido estatismo do lado da prestação de cuidados, privilegiando o papel estratégico e pagador do Estado. Ao mesmo tempo, procederam à “empresarialização” do próprio SNS e à chamada à colaboração de prestadores públicos, privados e da economia social.
A forte procura impôs a externalização da prestação de cuidados diferenciados por parte do SNS. A expansão e renovação da própria rede hospitalar pública foi realizada através das Parcerias Público-Privadas (PPP) da saúde. A criação da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) apoiou-se predominantemente na capacidade prestadora de instituições da economia social (IES) e privados.
A expansão dos seguros em saúde a novas camadas de profissionais urbanos a título de fringe benefits e a extensão dos subsistemas de saúde vieram alimentar uma procura diferenciada de cuidados sem financiamento público, abrindo a janela de oportunidade para a expansão do sector privado, que fora crescendo em escala com as PPP, e social, que ocorrera com a devolução de hospitais às Misericórdias.
No momento presente, vivemos uma importante fase de reorganização do financiamento da saúde .
O Estado teve de recuar para defender a sustentabilidade das suas finanças. A sua parte da despesa em saúde caiu de 70 para 65% dos gastos totais. O acesso a cuidados de saúde por via de outros financiadores está em crescendo, através da atividade seguradora, do associativismo e de esquemas de fidelização de consumidores, criando pressão sobre os prestadores quanto aos preços convencionados.
Esta pequena revolução vais ser impulsionada pela transformação da ADSE em instituto público para a mutualização da proteção da saúde num universo de mais de 2 milhões de portugueses e que dá sinais de pretender entrar também na prestação direta de cuidados de saúde. As IES estão a afirmar-se igualmente neste plano, organizando ofertas de acesso a preços convencionados articuladas com a prestação direta de cuidados.
Tudo indica que chegou a hora de ensaiar um novo tipo de parceria: as “parcerias público-privado–sociais”, que podem abranger até 4 milhões de portugueses dispostos a adquirir cuidados diferenciados, que o SNS não tem vocação para prestar. Tais parcerias podem envolver ADSE, CVP, SCML, operadores privados de saúde, Misericórdias, Mutualidades e outras IES, bem como seguradoras e gestores de redes de prestadores, em arranjos de geometria variável entre prestadores e pagadores, com vista a sustentar o acesso e cobertura de riscos em saúde diferenciados cada vez mais alargados. Se assim for, a cidadania social será seguramente mais robusta!
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