A cidade e o amor segundo Luís Severo
O amor sem ressaca e a ansiedade geracional, a gentrificação e a vida adulta. Tudo isto está no novo homónimo de Luís Severo. Um disco enorme para ouvir nos dias 29 e 30 no Teatro Ibérico, em Lisboa.
Meu Amor é a canção que faltava a Luís Severo. Piano que rebrilha e escorre mel, que retém a intimidade do tempo, capaz de embelezar o vazio. É o amor em orvalho, um encanto que nos lembra Leonard Cohen. Um “suspiro de paz”.
Meu Amor é a canção que nos faltava de Luís Severo – e uma espécie de statement no seu novo disco homónimo, um disco que sacode a ressaca romântica e o coração triturado dos anteriores. “Irritava-me não ter uma canção simplesmente apaixonada, sem mágoas. Quis assinalar isso”, diz o músico de 24 anos, que em 2015, com o tremendo Cara d’Anjo, entrou directamente para os lugares de topo do cançonetismo português.
Entretanto decidiu começar a viver da música, a pagar uma renda de casa, a viver em Lisboa a tempo inteiro. Luís Severo, editado pela Cuca Monga, é um disco “de quem está mais em paz”, sobretudo no amor, mas não deixa de ser percorrido pelo sobressalto, pela ansiedade geracional. Ao peso omnipresente da precariedade (“Oh mãe/ Desculpa ser cabeça de vento/ Um dia hei-de ser alguém/ Hei-de arranjar sustento”, canta em Cabeça de Vento) junta-se a gentrificação da cidade, numa Lisboa dopada pelo turismo em rédea solta, em que a habitação é substituída por hotéis, Airbnb e o milésimo restaurante com bolo do caco, muito genuíno e autêntico (“Lisboa chora agora/ Não há filho teu que não te venda/ Fazem de ti boneca à espera/ Que no fim ainda tenhas remenda”, ouve-se em Amor e Verdade).
Feitas as contas, Luís Severo é o disco em que Luís bate de frente com a vida adulta. Se Cara d’Anjo era, entre outras coisas, sobre crescer, mais extrovertido, insinuante e à flor da pele, Luís Severo carrega algum desencanto, melancolia, vontade de parar e olhar para dentro. “Acho que neste álbum me julgo mais e me ponho à prova. Faz sentido, é uma coisa mais adulta”, considera o autor, que integra também a promotora Maternidade, partilha a banda Flamingos com Coelho Radioactivo e é um dos nomes incontornáveis de uma cada vez mais visível geração de jovens escritores de canções portugueses. “Acaba por ser mais humilde no sentido em que é menos impulsivo. No outro disco quis chocar com algumas coisas, até porque recebia muito menos atenção e fazia sentido criar um hype assim mais estranho.”
Agora o cenário é diferente. O rapaz que durante anos conhecemos como Cão da Morte, que deu os primeiros passos com a FlorCaveira, que tocava canções violáceas de sentimento caseiro nos concertos da família Cafetra, é hoje um compositor e letrista em ascensão. Procurado por outros – como a fadista Cristina Branco, para quem compôs o tema Alvorada –, capaz de fazer dois discos soberbos num intervalo de dois anos, capaz de encher o Teatro Ibérico, em Lisboa, para onde estão agendados os concertos de apresentação do novo álbum. A solo, ao piano, dia 29, já esgotado, e dia 30. Não o deixemos fugir.
Novos ares
Luís Severo começou a germinar este disco durante o ano passado, quando andava a tocar Cara d’Anjo “todas as sextas e todos os sábados”. Estava a precisar de ir a outros lados. “Não estava propriamente farto do Cara d’Anjo, mas chegou a um ponto em que olhava para a minha setlist e sentia necessidade de tocar coisas novas”, recorda. Logo na fase inicial percebeu que queria alterar o seu modus operandi. Concentrou-se no piano em vez dos teclados. Saiu do estúdio da Interpress e foi para o da Cuca Monga, editora e promotora dos Capitão Fausto, onde gravou o disco com Diogo Rodrigues, com quem já tinha tocado ao vivo.
“Fiquei com um sítio para onde ir à noite, tocar piano. O facto de ter estado mais isolado fez com que pudesse compor um disco menos influenciado”, afirma. “Quando estava na Interpress inevitavelmente encontrava imensas pessoas [é também onde ensaia a malta da Cafetra, Maternidade e Xita Records], elas pediam para ouvir as canções, mandavam logo cinco ideias nas quais eu ficava a pensar a noite toda… Aqui em Alvalade pude estar imenso tempo a compor sozinho, sem ninguém fazer a mínima ideia do que estava a acontecer.”
Entre a fase mais avançada de composição e a fase de gravação, Diogo Rodrigues e Manuel Palha foram “duas pessoas importantíssimas”, refere Luís. “Nós os três tocámos a maior parte dos instrumentos. O Diogo está mais próximo do que eu ouço, já o Manel ouve imensa música clássica e pensa muito em arranjos. Eu quis tê-lo ao meu lado como uma salvaguarda para a minha própria liberdade e as minhas limitações técnicas.”
Nas oito canções de Luís Severo há uma maior elegância de arranjos, um trabalho mais modular e de artesão (ouçamos Lamento, com a flauta de Violeta Azevedo a serpentear o piano). “À primeira vista pode parecer um disco com mais arranjos, mas factualmente nem é. No outro pus-me a tocar muitas coisas que não estavam bem lá, depois punha camadas sobre camadas… Este está mais competente e objectivo.” O resultado final, masterizado por Eduardo Vinhas no Pónei Dourado, não é um Cara d’Anjo 2.0 – e teria sido tentador ir pelo mesmo caminho, já que eram canções que se colavam tão rapidamente à pele. Ouve-se agora um tom mais anglo-saxónico, em vez da portugalidade que dominava o álbum anterior (nesse sentido, a única ligação mais óbvia a Cara d’Anjo é Planície, dulcífica e deslizante, sem esquecer uma nova referência à fadista Argentina Santos, aqui em Olho de Lince, com a reapropriação da frase “Que isto aqui é Lisboa cada qual que se defenda”).
“Eu quero voltar a fazer coisas mais tuga, mas já estava com vícios. Se fosse mais por esse lado ia soar tudo à Lábios de Vinho ou à Vida de Escorpião [canções de Cara d’Anjo]. Ter ido ao piano também me possibilitou afastar-me disso, e andei a ouvir muito uma escola mais recente da folk”, conta o músico. O novo disco pode ser menos directo e roliço do que o anterior, mas é mais surpreendente, menos fugaz, mais vitaminado. E, para Luís Severo, mais dele. “Quanto mais evoluis e mais confortável estás, mais começas a fazer coisas que são realmente tuas. Nesse sentido, acho este disco um passo importantíssimo.”
O tema de arranque do disco, Amor e Verdade, sintetiza-o. A vida adulta (“Fui moço já sou homem/ Deu tédio para aprender”), o amor e a gentrificação feitas joalharia folk a evocar Sufjan Stevens (tal como Escola), num hino agridoce a Lisboa, com os rendilhados de guitarra e o violino de Tomás Wallenstein a não esconder o desencanto. Tal como os colegas, de Éme a Sallim, de Lourenço Crespo a Lucía Vives, Luís Severo canta Lisboa, a das suas memórias, a do seu presente. “Acho que este disco é mais sobre a cidade”, diz Luís. “Eu mantenho a cena romântica, mas como mote para falar de outros assuntos”, acrescenta.
E um desses assuntos é o seu encontro com o feminismo – não de um ponto de vista activista, mas de “uma forma de confronto pessoal”. “Sei que tenho privilégios por ser homem e isso fez com que aceitasse coisas sem nunca as ter questionado”, aponta. “A pessoa com quem estou ensinou-me coisas sobre as quais nunca tinha pensado. Por ela ter essa consciencialização que eu não tinha tanto, acabo por falar disso aqui. Toco mais em assuntos que são de natureza política, mas sem ser de uma forma politizada”, observa Luís.
E daí vamos parar outra vez a Planície (“Privilégio é ser homem na batota/ Na teima desta contradição/ Dás birra até risota/ Se não me vês em tua posição”) ou a Boa Companhia, canção sacarina sobre as complexidades do amor e do compromisso, com guitarras iridescentes à Real Estate que desaguam numa ginga muito girl groups dos anos 60 (e é também “uma resposta” a Deeper Than Love de Colleen Green). Das melhores de Severo, em que mostra mais uma vez o seu talento para manobrar palavras (“Que amor que mata dá-te mais liberdade/ Para te entregares sem medo da intimidade”).
Outra marca forte deste disco é o coro, que traz uma fluidez especial às canções, constituído por Teresa Castro (Calcutá, Mighty Sands), Beatriz Diniz (April Marmara), Manuel Lourenço (Primeira Dama, Migas) e Manuel Palha (Capitão Fausto, Modernos). “Apetecia-me chamar a malta e ter um coro composto. Dá um ar mais orgânico e corrido ao disco, estava tudo muito mecânico”, diz Luís. Isso é claro na superlativa Olho de Lince, que fecha o disco, o enlace perfeito: outra vez a cidade, o amor que já não é danação; outra vez as guitarras que ondulam, as subtilezas de arranjos que mordiscam o ouvido, a luz que resiste.
“Os assuntos mais complicados de que falo neste disco é uma forma de me sentir bem com eles. Acho que o saldo do álbum acaba por ser uma coisa feliz”, refere o músico. Este é o disco que faltava a Luís Severo. Não o deixemos fugir.