Porto Paralelo contou a história de 55 lojas tradicionais – 13 já fecharam

Falências, projectos turísticos ou a lei do arrendamento ameaçam as velhas lojas portuenses. Mas também falhas de comunicação e de todas quererem ser "Lello".

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Adriano Miranda
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Se procura perucas, barbas, bigodes e afins (de cabeços naturais ou artificiais) já não pode encontrá-los na Cardoso Cabeleireiro, uma das casas emblemáticas da cidade do Porto, inaugurada em 1906, na Rua do Bonjardim. Durante décadas, aquela montra que parecia saída de um outro tempo, captava a atenção de quem passava, enquanto lá dentro, à vista de todos, Israel Matos ia criando novas cabeleiras. Marta Nestor, fundadora e agora o único elemento do projecto Porto Paralelo, não sabe exactamente o que se passou desde que recolheu a história do estabelecimento, para que as portas se tenham fechado, mas recorre a algumas fotografias para explicar “que não é difícil perceber” o que aconteceu.

Na primeira, vê-se a antiga fachada onde estava instalada a loja de perucas, de portas fechadas. Noutra imagem ao lado está a nova loja da Cardoso Cabeleireiro. “Saíram porque se dizia que o edifício ia ser transformado num hotel. Mas não foram para longe, abriram do outro lado da rua”, diz Marta Nestor. A fotografia mostra o novo espaço, mas não fosse o nome, e dificilmente se reconheceria a tradicional loja portuense, enroupada numa imagem moderna. Outro conjunto de imagens, deste ano, marca o último capítulo. As portas da antiga loja continuam fechadas. Na nova loja que acolhera o cabeleireiro está agora a Souvenirs Baixa. “O senhor Israel tinha sempre a porta aberta e o espaço, antigo, legitimava o produto. Com a mudança para a outra loja, não só perdeu proximidade com a rua, porque estava lá ao fundo, como tentou chegar a uma estética contemporânea que levou a uma perda de identidade. Este é um daqueles casos em que a mudança de espaço é fatal”, argumenta Marta.

A designer, actualmente a fazer o doutoramento na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, começou o Porto Paralelo, como projecto académico da sua licenciatura, em 2012. O encerramento das lojas tradicionais da cidade ocupava cada vez mais espaço na imprensa e Marta Nestor quis criar um directório online onde estivessem listadas as lojas com mais de 50 anos, com pequenos resumos sobre a sua história e actividade, e informação prática como os contactos e a melhor forma de lá chegar de transporte público. A página tem hoje informações sobre 52 lojas, mas há três outras já mapeadas. Contudo, tal como a Cardoso Cabeleireiro (a cuja descrição se recorreu para o arranque deste texto), nem todas continuam ainda de portas abertas. “Das 55 lojas mapeadas, 13 encerraram entretanto”, diz Marta. E há ainda duas em risco de fechar, por razões pessoais e não por motivo de despejo, esclarece.

Aliás, a responsável do Porto Paralelo, que integra o grupo de trabalho “Porto de Tradição”, da Câmara do Porto, é peremptória em dizer que, ao contrário da percepção geral, a principal razão para o encerramento destes espaços não é serem atropeladas por projectos turísticos. “Há, sobretudo, problemas de gestão, falências… Também há alguns casos relacionados com as mudanças na lei do arrendamento, ou situações muito específicas como a do Cardoso Cabeleireiro…”.

Do contacto diário com os comerciantes, Marta Nestor identifica, sem pensar duas vezes, o que julga ser o maior desafio das lojas históricas do Porto. “Há uma ausência de comunicação. Muitas têm serviços que não são comunicados. Por exemplo, a A. Costa Real, em Sá da Bandeira, que vende carteiras, faz arranjo de carteiras na cave e ninguém sabe disto”, afirma. Além disso, há também o problema do que chama “o efeito Lello”.

“O problema de muitas lojas cinquentenárias é a aproximação à [Livraria] Lello, quando nem todas têm capacidade para ser Lello. Há uma mudança do foco no produto, para a experiência, a degustação, as visitas. Isto a curto prazo funciona, com o turismo, mas a longo prazo pode ser muito prejudicial. O que aconteceu na Lello foi uma resposta a um fenómeno que estava a acontecer, não o contrário e muitos comerciantes não têm consciência disto”, diz.

E já que se fala em turismo, Marta Nestor também tem uma opinião sobre a forma como ele pode afectar este tipo de comércio. “O turismo não é uma ameaça. A interpretação da vontade dos turistas é que é uma ameaça. A ideia que ele gosta de levar souvenirs made in China, que gosta do falso, de conceitos inovadores e da legenda ‘since’. Há a ideia de que é preciso carimbar, até já vi uma loja com ‘since 2015’!. O que faz o investidor, como ele age sobre o território, isso, sim, preocupa-me”, conclui.

Exemplo prático: a Casa Oriental, que não chegou a integrar o Porto Paralelo e, agora, já não integrará, de certeza. A imagem da mercearia tradicional, fundada em 1910, junto à Torre dos Clérigos, com o seu painel colonial, bacalhaus a ornamentar a entrada e caixas de frutas e legumes a esparramarem-se pelo exterior, era uma fotografia obrigatória para quem visitava aquela zona da cidade. Mas os donos venderam-na ao grupo que também possui, na porta ao lado, a Casa Portuguesa do Pastel de Bacalhau. A mercearia tradicional teve obras, o painel foi renovado, os bacalhaus reais da fachada foram substituídos por exemplares de papelão e no interior – como notava, desgostosa, uma blogger de viagens de origem canadiana, que tinha visitado o espaço quatro meses antes, no seu formato original – já não havia frescos e “os produtos estavam em sacos, jarros, garrafas ou latas”. “Senti-me como se estivesse numa pastelaria fina, a preparar uma selecção de bens comestíveis para aguentar a vida em Marte. Com muito vinho”, escreveu Gail Aguiar, no seu blogue.

O conceito que deixou a viajante desconsolada não vingou. A Casa Oriental é, há menos de dois meses, uma cópia do Mundo Fantástico da Sardinha Portuguesa, que abriu em Lisboa no ano passado. O letreiro com o negro que serve o seu patrão branco, ainda está na fachada, mas não há nem um bacalhau (verdadeiro ou falso) para amostra e o nome do local é agora O Valor do Tempo.

À parte os casos em que a falência acaba por ditar o encerramento – como aconteceu com a Casa das Luvas, uma das histórias que mais marcou Marta Nestor – por que é tão difícil explicar aos novos investidores que estes espaços históricos importam? Que é também por eles que os turistas procuram a cidade? “Porque há preconceito em relação a estes formatos comerciais. E porque muitas vezes estamos a falar de investidores estrangeiros, que não têm qualquer ligação à cidade. É essencial analisar as mais-valias e como podia ser feita a inserção”, diz Marta, que logo volta a outra loja inserida no Porto Paralelo que hoje já não existe: a Casa Lima, onde se vendiam carteiras desde 1918.

O espaço, instalado no prédio da antiga A Brasileira, onde vai nascer um hotel, fechou com a chegada das obras. “Uma loja de carteiras cabia perfeitamente num hotel. Era possível fazer uma interligação, ainda que implicasse algumas adaptações de arquitectura. E este é um papel que quero muito ter, demonstrar o valor que espaços como este podem ter. Neste momento, é tudo neo-vintage. Ao menos, que seja vintage a sério”, diz.

Depois de ter chegado a incluir uma equipa de sete elementos, o Porto Paralelo continua agora apenas com a fundadora, mas o mesmo número de serviços. Além da plataforma online, que ela garante que irá continuar a crescer, presta serviços em áreas como design, marketing, comunicação e gestão de produção – recorrendo, agora, e muito, a parcerias externas. Da janela do seu escritório vê a montra da Casa Januário, que ajudou a recriar, depois das obras de renovação, e agora anda também ocupada com o trabalho do terreno do projecto “Porto de Tradição”.

Olhando para o futuro, Marta Nestor diz ter a percepção que algumas lojas históricas do Porto ainda se vão perder. Mas diz também que há “muita expectativa” entre os lojistas, pelo projecto em desenvolvimento, e que acaba por ser legitimado pelo trabalho mais adiantado que já foi feito em Lisboa, com o projecto Lojas com História. “Eles têm, sobretudo, muita urgência em saber os resultados”, diz. Em meados de Junho, os primeiros espaços classificados neste âmbito devem ser conhecidos.

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