Estratégia nacional para integrar sem-abrigo acabou com 4 mil ainda na rua
Há um ano que o Parlamento aprovou uma resolução a pedir a avaliação da velha estratégia destinada a integrar quem vive nas ruas e o lançamento de uma nova. O plano nunca teve dotação orçamental.
A avaliação da Estratégia Nacional de Integração de Pessoas Sem Abrigo 2009-2015 foi entregue na Assembleia da República e fica disponível na tarde desta terça-feira no site do Parlamento. Grande parte ficou por fazer, até porque em 2013 foi interrompido o trabalho do grupo que a deveria pôr em prática. A recomendação é para que não se façam “alterações de fundo”, antes se “potencie o trabalho realizado”.
O fenómeno continua muito expressivo. Em 2009, quando a estratégia arrancou, foram identificadas 2133 pessoas sem abrigo, 63% das quais em Lisboa e no Porto. No final de 2013, só nos registos da Segurança Social havia 4420 processos activos de pessoas que se apresentavam nessa situação. Três anos depois, havia 4003, revela o documento.
Incentivado pelo Parlamento Europeu, Portugal criou em 2007 um grupo de trabalho para desenvolver uma Estratégia Nacional de Integração das Pessoas Sem Abrigo. O plano foi apresentado no dia 14 de Março de 2009. Objectivo: criar condições para que ninguém ficasse na rua, a menos que quisesse, e para que se mobilizassem recursos para garantir a promoção da autonomia.
A coordenação nacional da estratégia, com um eixo sobre informação sensibilização/educação e outro sobre intervenção, ficou a cargo do Instituto de Segurança Social. Um grupo intersectorial, formado por entidades públicas e privadas, foi incumbido da tarefa de implementar, monitorizar e avaliar.
Grupo de trabalho parou em 2013
A estratégia nunca teve dotação orçamental. O trabalho do grupo multissectorial – do qual fazem parte, por exemplo, o Alto Comissariado para as Migrações, a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, o Programa Nacional para a Saúde Mental, o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências e a Rede Europeia Anti-Pobreza, EAPN na sigla inglesa – parou em 2013. Foi reactivado em Janeiro para fazer esta avaliação, apresentada ao Governo pelo Instituto da Segurança Social, o organismo coordenador.
Não é que nada tenha saído do papel. A estratégia está pensada para ser operacionalizada a nível local. Sempre que o número justifica, deverá haver um Núcleo de Planeamento, Intervenção Sem-Abrigo (NPISA), a mobilizar recursos locais e a delinear um conjunto de respostas integradas. Foram criados 15, que cobrem as áreas onde o fenómeno é mais expressivo: Almada, Amadora, Aveiro, Braga, Cascais, Coimbra, Faro, Figueira da Foz, Lisboa, Oeiras, Porto, Seixal, Setúbal, Vila Nova de Gaia e Espinho. Funchal e Ponta Delgada não fazem parte da estratégia.
O relatório aponta vários pontos fortes na estratégia: o facto de se ter uniformizado o conceito de sem-abrigo, de se ter criado um modelo de intervenção e acompanhamento, a “continuidade da intervenção dos NPISA, mesmo sem a redefinição de um novo ciclo da estratégia”, o envolvimento e a articulação de entidades públicas e privadas.
No outro lado da balança, isto é, do lado dos pontos fracos, estão “a interrupção dos trabalhos” do grupo intersectorial, a “descontinuidade no levantamento de informação”, a “falta de uniformidade entre os NPISA existentes”, a “escassez da formação aos NPISA, não tendo a estratégia tido um papel directo na promoção da qualidade técnica”, e a “falta de qualidade dos serviços prestados”.
Entendendo que “o plano estratégico ainda se encontra bastante actual e que já existem várias propostas elaboradas que permitem a sua implementação, considera-se que na reedição da estratégia se devem manter os dois eixos de intervenção e os objectivos estratégicos para cada eixo”, lê-se no documento. Não de qualquer modo. “Deverão ser discutidas e ajustadas” as actividades a realizar.
Petição reclamava nova estratégia
Há muito que a avaliação da estratégia 2009-2015 era exigida. Em Janeiro de 2016, o grupo parlamentar do Bloco de Esquerda entregou no Parlamento um projecto de resolução a recomendar ao Governo que procedesse “a uma avaliação participada e integrada da estratégia, incluindo todas as entidades parceiras e as próprias pessoas sem abrigo”, que a renovasse, “garantindo a parceria entre os diferentes sectores da política social, as entidades envolvidas e as pessoas sem abrigo”, e que lhe destinasse recursos. O Parlamento aprovou a proposta a 23 de Fevereiro daquele ano.
O Governo prometeu dar seguimento à resolução. Os meses passaram sem notícia. A 17 de Outubro, a Comunidade Vida e Paz lançou uma petição online a reclamar uma nova estratégia nacional de integração de pessoas sem abrigo, que capitalizasse “as experiências positivas” da anterior e que garantisse as “melhorias necessárias”. No início de Fevereiro deste ano, entregou-a, com mais de quatro mil assinaturas, ao Presidente da República, ao Governo e à Assembleia da República.
A 16 de Fevereiro, Marcelo Rebelo de Sousa esteve no Porto, a servir jantar a pessoas em situação de pobreza extrema, algumas sem abrigo, e mandou o recado ao Governo. “O último plano terminou no final de 2015”, lembrou. “Em 2016, não houve plano, houve um prolongamento parcial do plano [2009-2015] e o Governo ficou de dar agora uma resposta em 2017. Há muitas instituições que estão à espera. É uma necessidade.”
Numa nota enviada às redacções, o Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social informa que “até ao final do mês de Março decorrerá o processo de audição no decurso do qual serão ouvidas as entidades e instituições que trabalham com os sem-abrigo, no sentido de recolha de propostas para a próxima estratégia”. “O Governo propôs à Assembleia da República apresentar o presente relatório, bem como discutir as linhas gerais da próxima estratégia nas próximas semanas”, adianta. “Até ao final de Abril será divulgada a ENIPSA [Estratégia Nacional de Integração de Pessoas Sem Abrigo] 2017-2023”, diz ainda.