Há 125 anos, o mar escreveu uma das páginas mais negras da pesca em Portugal
Naufrágios que mataram num só dia 105 homens da Póvoa de Varzim e da Afurada mudaram a forma como o país olhava para os pescadores e levaram à criação do Instituto de Socorros a Náufragos.
Na década de 50, pouco mais de meio século depois da grande tragédia marítima conhecida localmente apenas como o "27 de Fevereiro", a igreja da Lapa, na Póvoa de Varzim, assinalava o dia como se ele tivesse acontecido uma semana antes, estendendo um passadeira preta aos corações em prantos que enchiam o templo em frente à enseada. Recorda-o José Azevedo, memorialista, ex-jornalista, que, rapaz ainda, ia à primeira missa pela mão da avó, testemunha daqueles dias de chumbo do Inverno de 1892 em que o negro passara a cobrir os corpos desamparados das viúvas, órfãos, familiares e vizinhos dos 105 homens que o mar tragou. Sem a mesma carga fúnebre, é certo, passados 125 anos, a Póvoa continua a não esquecer esta data terrível que mudou a forma como Portugal olhava para os seus pescadores e levou a rainha D.ª Amélia a fundar, em Abril desse ano, o Instituto de Socorros a Náufragos.
A fome, dessa que cresce em dias e dias de invernia sem pescar, atirara-os ao mar numa quinta-feira. Era quase carnaval mas, naquele final de Fevereiro de 1892, os pescadores da Póvoa de Varzim só pensavam na pescada que os atraia ao mar da Cartola, lá para o largo de Aveiro. No dia seguinte, já com o vento a virar para sudeste, muitos ainda voltaram à faina para alar as redes, mas o destino preparava-lhes uma armadilha. Atiçadas por um temporal grosso, as vagas ergueram-se contra aquela gente. De 46 embarcações (seis delas da Afurada, Gaia), dez soçobraram, ao falharem, confundidas pela borrasca que as deixou sem mastros e lemes e pelo nevoeiro que lhes fechou o horizonte, a entrada no Rio ave, em Vila do Conde, na estreita enseada das Caxinas, ali a norte, e no próprio porto da Póvoa.
O temporal terá sido tremendo, sendo até erradamente descrito, num jornal da época, como um tufão. O investigador Rui Moura, professor de Geociências da Universidade do Porto procurou, a pedido do PÚBLICO, os dados meteorológicos do Observatório da Serra do Pilar, inaugurado uns anos antes. E a verdade é que naquele final de semana de marés avivadas pela lua nova, outros factores, como um baixa acentuada da pressão atmosférica e o vento forte, que rodou de leste para sudoeste de quinta para sexta-feira criaram o caldo para uma tempestade que foi demasiado forte para aquelas embarcações frágeis. Dos mais de mil homens apanhados no mar, morreram 105, de uma assentada: setenta poveiros, e 35 da freguesia ribeirinha de Gaia. Outros três pereceram nos dias seguintes, em terra.
A desgraça dos humildes
Na sua Epopeia dos Humildes, António Santos Graça fixou a data, 60 anos depois, com esta memória. “Duas lanchas, a do tio Praga e a do tio Jéque, caminhavam a par, apenas com uma [vela] latina, a caminho do norte. Tinham que seguir como Deus fosse servido, porque não havia força humana que as pudesse desviar do seu curso tempestuoso. Sem um minuto de descanso, os homens das companhas esforçavam-se para deitar fora a água, que as vagas alterosas teimavam em atirar para dentro das embarcações. Os mestres eram compadres e amigos. As companhas afoitavam-se mutuamente para não esmorecerem. Mas uma – a do mestre Jéque – pelas alturas de Esposende, encheu-se de água e soçobra; a outra tenta, mas não pode acudir-lhe. É o mestre da que naufraga que grita:
– ‘Não tentes o socorro, compadre, que morreis todos. Deus te guie e leve a salvamento! Leva o último adeus para as nossas mulheres e nossos filhos! Até à eternidade, compadre!’
O velho mestre João Praga levantou a mão num gesto de despedida mas não respondeu. Duas lágrimas rolaram-lhe pela face – mas ninguém mais lhe ouviu uma palavra. Leme bem firme, todo o dia e toda a noite até ao alvorecer do dia seguinte, em que entrou em Vila Garcia, na Espanha. Salvou a companha. Dois dias depois chegava à Póvoa, de comboio. Após a tragédia nunca mais comeu, nunca mais falou. Oito dias depois da sua chegada – morria! A grande dor de não poder salvar – matou-o!...”
José de Azevedo, autor de várias obras sobre a história local que na próxima quarta-feira, dia 8 de Março, pelas 18h, profere, na biblioteca municipal uma palestra sobre o tema, fixa-se, numa curta conversa com o PÚBLICO, nos efeitos da tragédia naqueles que lhe sobreviveram: fossem eles pescadores, como aquele homem que se abandonou à morte, fossem mulheres e crianças, obrigadas, num repetente a refazer as suas vidas. “Os 70 mortos da Póvoa deixaram 50 viúvas e 121 orfãos, 69 rapazes e 52 raparigas”, contabilizou o antigo escrivão da capitania que foi, durante meio século, correspondente local do Jornal de Notícias.
“É difícil, hoje, imaginar a fome que aquelas pessoas passavam e o esforço que aquelas mulheres tiveram de fazer para sustentar as famílias destroçadas”, acrescenta o autor de No Reino da Póvoa que, aproveitando o facto de a iniciativa na biblioteca calhar, por questões de agenda, no Dia Internacional da Mulher vai tentar fazer alguma luz sobre a forma como estas enfrentaram aqueles dias sombrios. Sabe-se, por testemunhos da época, lembra, que a miséria foi tal que muitas tinham de enviar as crianças “com roupa de pedir”, em busca de esmola nas comunidades vizinhas.
Aliás, num país desorganizado, e a passar, também ele, uma borrasca, com o Ultimato Inglês de 1890 e a crise financeira que haveria de levar, no Verão de 1892, a que o Governo do Reino decretasse uma bancarrota parcial, este desastre no mar pôs a nu a total inexistência de um suporte estatal para uma calamidade desta dimensão. A Casa Real abriu uma subscrição e angariou rapidamente 15 contos de rei, mas, como disso deu conta a revista Occidente, numa edição especial a 11 de Março, foi muito graças à sociedade civil que se mobilizou um pouco por todo o lado, que, duas semanas depois, já havia 42 contos para ajudar os desafortunados da Póvoa e da Afurada.
Ao Portugal atrasado daquele fim de século faltava quase tudo, e aos pescadores, deixados à sua sorte, mais ainda. Na Póvoa cuja enseada era um cemitério, tal os seus perigos, tinha já sido construído um novo farol, em Regufe, mas este não estava a funcionar por falta de fundos. À velha, e ainda actual, maneira portuguesa, o desastre acelerou a melhoria do sistema de sinalização e provocou, logo em Abril daquele ano, a instituição, por ordem da Rainha D.ª Amélia, do Instituto de Socorros a Náufragos, organismo que permitiu espalhar pelos principais pontos da costa equipas de resgate e salvamento.
Um luto que perdurou no tempo
Também nesse ano, a 1 de Dezembro, recorda José Azevedo, passou a ser obrigatória a inscrição dos pescadores na respectiva delegação marítima ou capitania, porque, como fora evidente em Fevereiro, ninguém, a não ser os respectivos mestres, sabia quem ia a bordo das embarcações que saiam para o mar. A contabilidade dos mortos daquele desastre foi, por isso, uma tarefa difícil, e demorada. Nem todos os corpos foram devolvidos pelo mar e, sem registos, só as respectivas famílias puderam atestar a perda dos seus homens. Sendo que, nalguns casos, como os das embarcações que foram arrastadas para a costa galega, foi preciso esperar dias, de coração nas mãos, para se perceber o que realmente acontecera a algumas companhas.
Desde então, acabaram, durante muito tempo, as festas nos adros das igrejas. O São Pedro, padroeiro dos pescadores, só voltaria a ser celebrado, festivamente, na década de 60 do século XX. Não por qualquer azedume com o apóstolo, incapaz, como todos os santos, de travar a desgraça, mas por respeito aos mortos. Pelos quais, acrescenta José Azevedo, se guardavam, numa caixa, todos os instrumentos musicais, que ninguém ousava tocar naquele dia do ano. “A datar de então, deixaram de usar os tradicionais trajos garridos, domingueiros, singularmente característicos da sua grei: calça e vestia brancas, percinta da mesma cor, listrada de azul, e comprido catalão vermelho. Em seu lugar, passaram a usar fatos escuros, da cor do luto do ´27 de Fevereiro’”, escrevia o escritor poveiro Vasques Calafate, em Fevereiro de 1944, no jornal O Comércio do Porto.
Ferreira de Castro, Ramalho Ortigão, Raúl Brandão. Foram vários os escritores que, ao longo de mais de um século, alimentaram com palavras uma memória que o tempo suaviza, mas não apaga. Já não há esquifes com o rosto dos mortos, nem prantos de mulheres e homens de negro nas missas da Lapa, mas nos últimos dias, desafiando o Carnaval, os metrosideros que pontuam a marginal da Póvoa – ali em frente à igreja e à mesma praia onde mulheres, velhos e crianças assistiram há 125 anos, impotentes, à maior desgraça da história do concelho – ostentavam nos seus ramos folhas A4, com textos e imagens alusivas à data que ninguém ousa esquecer.
A iniciativa foi do Varazim Teatro, companhia que ganhou o concurso de ideias da União de Freguesias da Póvoa de Varzim, Beiriz e Argivai para assinalar a data. Impedida, pelo mau tempo, de prosseguir a homenagem à beira-mar no dia 27, o grupo leva a cabo esta tarde, pelas 15h30, às portas do Cine-Teatro Garret, uma performance evocativa. Logo a seguir, às 17h (com repetição às 22h), o compositor Fernando Mota leva ao principal palco da cidade o espectáculo Quando o homem Lavrava o mar, homenagem aos pescadores portugueses escrita já em 2014 e que contará, nestas duas sessões com um coro e um ensemble de cordas da Escola de Música da Póvoa. Mais do que os mortos, o artista sonoro procura, nesta criação, celebrar o esforço dos vivos que, como lembrava Eduardo Faria, nos espantam, aos terrenhos, pela forma como voltam ao mar, mesmo após uma desgraça que lhes ameaça a vida e lhes rouba os seus.