O gosto da dissidência
Se há um fio condutor neste livro de ensaios é a tendência de Helder Macedo para torcer o nariz aos consensos críticos, reavaliando gerações, resgatando autores, relendo poemas sobre os quais se pensaria estar tudo dito.
Dos ensaios sobre a poesia medieval, Bernardim Ribeiro ou Camões até aos testemunhos dedicados aos seus companheiros de geração do café Gelo, os textos de Helder Macedo, sem nunca se assumirem como ostensivamente polémicos, gostam de questionar leituras demasiado consensuais. Se existe um fio condutor num livro que abarca oito séculos de literatura portuguesa e reúne 25 textos escritos em diferentes tempos e circunstâncias, talvez ele possa ser encontrado nessa discreta dissidência que atravessa muitas destas páginas e que se adivinha que o autor pratica com prazer.
Camões e Outros Contemporâneos está organizado em quatro andamentos, e boa parte dos textos mais importantes do livro encontra-se na primeira parte, onde Macedo trata tópicos em que é um reconhecido especialista, do cancioneiro medieval, com uma inovadora releitura das cantigas de amigo a partir da análise da conhecida cantiga “Levantou-s’a velida”, de D. Dinis, passando pela discussão do cânone de Bernardim Ribeiro - um dos autores que mais profundamente estudou -, até alguns refrescantes textos sobre Camões. Um deles é dedicado ao “imaginário da malandragem” e, recorrendo às poucas mas extraordinárias cartas do poeta, durante muito tempo secundarizadas e silenciadas pela moral dominante, aponta o equívoco de se querer separar “o Camões mal-comportado dos bordéis lisboetas do sublime Camões da espiritualidade e do amor”.
A segunda parte do livro, intitulada História, Memória e Ficção, abre com uma fascinante análise comparada das visões de Portugal em Fernão Lopes, António Vieira e Oliveira Martins, e prossegue com um tema que depois atravessa vários textos deste conjunto, e que raramente tem sido tratado: o da alucinação na literatura. Um dos pontos altos deste conjunto é o longo ensaio dedicado a Manuel Teixeira-Gomes, um desses autores, a par de um Raul Brandão ou de um António Patrício, que Macedo considera injustamente ensombrados pela galáxia modernista de Orpheu. Cesário e Pessoa, mas também Saramago e Cardoso Pires, são outros autores abordados. E também Eça de Queirós, evocado num breve texto em que Macedo questiona o papel de uma suposta crítica queirosiana que persiste nos jornais, argumentando que esta olha para o país como algo de imutável e continua, portanto, a zurzir no Portugal de Eça, contribuindo para “neutralizar o que de diferente o Eça teria agora satirizado na nossa actual sociedade”.
O terceiro núcleo, Testemunhos, dá-nos as memórias que o autor conserva do grupo de pintores e escritores que começou a reunir-se no Café Gelo, no Rossio, pelo final dos anos 50, abordando mais detalhadamente alguns dos seus protagonistas, como Herberto Helder, Manuel de Castro ou Mário Cesariny. Para Macedo, estão todos vivos, como o estão os seus “contemporâneos” Camões ou Bernardim. Mas se adoptarmos critérios mais estritamente biológicos, a única escritora viva à qual dedica um texto autónomo neste livro é a jornalista e poetisa Joana Emídio Marques, autora de Rittornelos (Abysmo, 2014).
O volume encerra com uma bem conseguida tentativa de apresentar as principais figuras da literatura portuguesa devidamente enquadradas nos seus sucessivos contextos históricos e culturais, um ambicioso programa que só peca por alguma excessiva aceleração no sprint final. Entre os nascidos já na segunda metade do século XX, Macedo cita apenas três nomes: António Cabrita, Paulo José Miranda e Gonçalo M. Tavares, um triunvirato algo inesperado, mas que confirma, reconheça-se, a relutância do autor em papaguear consensos.