“Este livro está cheio de mortos, mas para mim estão todos vivos”

Helder Macedo acaba de lançar o volume de ensaios Camões e Outros Contemporâneos, um olhar sobre oito séculos de literatura portuguesa com paragens em D. Dinis, Bernardim ou Camões, mas também em alguns apeadeiros menos óbvios, de Manuel Teixeira Gomes a Manuel de Castro.

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O livro abarca oito séculos de literatura portuguesa e reúne 25 textos escritos em diferentes tempos e circunstâncias FOTO: MIGUEL MANSO

Poeta, romancista e autor de estudos de referência dedicados a autores como Bernardim Ribeiro, Camões ou Cesário Verde, Helder Macedo, há muito radicado no Reino Unido, acaba de lançar, aos 81 anos, o volume de ensaios Camões e Outros Contemporâneos, um conjunto onde a renovadora leitura de um célebre soneto de Camões ou a complexa discussão do cânone de Bernardim Ribeiro alternam com a tentativa de resgatar autores que Pessoa deixou na sombra, como Manuel Teixeira Gomes, ou com a memória de uma frustrada tentativa de golpe armado anti-salazarista em que se viu envolvido com Herberto Helder. Membro do grupo inicial do café Gelo, Macedo foi um dos vários poetas e artistas dessa geração que deixaram o país no início dos anos 60, e que, lá fora, deram ao espírito dissidente da tertúlia do café lisboeta uma “continuação mais interessante”, argumenta, do que aqueles que ficaram e se “tornaram surrealistas de escola”.

Estreou-se como poeta, tem uma extensa obra ensaística, iniciou nos anos 90 uma carreira de romancista. Se escrevesse o seu próprio verbete num dicionário de autores, o que poria em primeiro lugar?
Poria escritor, que abrange tudo... São manifestações diferenciadas, mas que acabam por ser complementares. É a mesma pessoa que escreve, com registos diferentes e instrumentos diversos. Mesmo em ensaios sobre obras literárias, se se escolhe aquele autor e não outro, é já uma opção. Mas é claro que a metodologia tem de ser diferente, não há nada pior do que a ensaística poética. Sei que há quem faça e goste, mas eu não.

Perguntando, então, doutra maneira. Se olhar para os seus ensaios no contexto do ensaísmo português contemporâneo, e o mesmo para a poesia e a ficção…
… Não faço essa distinção. Comecei a escrever poesia desde miúdo, mas nunca fui um poeta militante, não escrevo poesia todos os dias, nem todos os meses, e a minha tendência é cada vez mais para escrever ciclos com um fio condutor temático. Já era o caso de Os Trabalhos de Maria e o Lamento de José [um conjunto de poemas, muito elogiado por Jorge de Sena, que Helder Macedo publicou em 1969 no volume Poesia 1957-1968], e também da Viagem de Inverno [1994], com a referência a Schubert, e deste último, Romance [2015], que é uma reconstrução poética feita a partir de Bernardim Ribeiro. Aí pode falar-se de convergência de géneros, porque conto uma história, há uma referência literária e é poesia.

Ao contrário do poeta, o romancista revelou-se algo tardiamente?
Comecei a escrever ficção muito mais cedo do que a publicá-la. Ainda nos anos 60, mas já em Inglaterra, escrevi um romance e alguns contos, mas não puderam ser publicados em Portugal por óbvias razões de censura. Fiquei um bocado amuado com isso, porque os tinha escrito sem censura interna. A grande conquista de ter saído de Portugal foi essa: livrar-me dessa censura que se tornava parte de nós próprios. Era terrível. E depois do 25 de Abril, quando poderia ter publicado essas coisas, já não quis, porque literariamente tinham deixado de me interessar. Mas quando voltei a escrever ficção, pelo menos já não tinha esse problema das primeiras obras, onde se tenta sempre meter tudo e mais alguma coisa.

Em muitos ensaios deste livro - quer trate das cartas do Camões ou dos poetas do café Gelo -, dá grande importância ao contexto. A sua dupla formação em História e Literatura explica essa abordagem?
Sem dúvida. O primeiro dever do analista literário é entender as palavras do texto, ver todas as pistas e possibilidades, depois situá-lo no seu contexto histórico e cultural, e só então lhe é permitido extrapolar. Não podemos intervir com a nossa perspectiva no que teria sido a do Camões, temos de entender, tanto quanto possível, qual era a perspectiva dele, e depois, sim, relacioná-la connosco.

É precisamente porque o lê no seu contexto históricos que pode ver em Camões, como o título do seu livro sugere, um contemporâneo?
Exactamente. Mas contemporâneos são também aqueles com quem vivemos: este livro está cheio de mortos, mas para mim estão todos vivos.

Num destes ensaios recupera uma sugestão de Luciana Stegagno Picchio, que propunha adaptar à literatura o conceito de “escola” usado na pintura. Aceitar a ideia de uma “escola bernardiniana”, como sugere, permitiria resgatar do esquecimento bons poemas de autoria ignorada ou controversa?
Acho que sim, e alguns são grandes poemas. Numa edição das obras de Bernardim [Presença, 2010] que fiz a meias com um jovem aluno que sabe mais de filologia do que eu [Maurício Matos], sigo esse critério. Não vamos ignorar textos de qualidade só porque, por burrice nossa, não sabemos de quem são. E o Bernardim formou mesmo escola, tinha imitadores tanto em português como em castelhano. O Nuñez de Reinoso usa coisas dele e do Sá de Miranda, era discípulo de ambos.

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FOTO: MIGUEL MANSO

Bernardim e Sá de Miranda terão nascido com um ano de intervalo, e Gil Vicente era pouco mais velho. Voltou a haver uma geração na poesia portuguesa com três nomes desta estatura?
O Camões criou algum deserto à volta, mas o António Ferreira foi um bom poeta. E temos mais tarde essa parelha notável de fundadores da poesia moderna: o Cesário Verde e o António Nobre.

E o Pessoa e o Sá-Carneiro?
O Sá-Carneiro morreu muito novo. E a presença dominante do Pessoa deixou injustamente esquecidos autores como Manuel Teixeira Gomes ou António Patrício, que na época não estavam necessariamente na moda.

Num ensaio sobre a poesia medieval sugere uma hierarquização dos géneros consoante o tratamento dispensado à mulher. No texto dedicado a Teixeira Gomes elogia a sua visão da condição feminina, mais avançada do que a das próprias sufragistas com quem o autor se relacionou em Londres. Numa entrevista recente destaca o surgimento de vozes femininas autónomas como um aspecto crucial da nova poesia portuguesa. Pensando também em algumas protagonistas da sua ficção, podemos considerá-lo um autor feminista?
Se eu disser que sim, as mulheres caem-me em cima, no mau sentido do termo. O que procuro, sobretudo na ficção, é entender o outro. Como sou um homem heterossexual, interessa-me, intriga-me mais, a personalidade feminina. E considero o amor e o erotismo como veículos de conhecimento. Nesse campo estou muito com o Teixeira Gomes, quando ele dizia que a emancipação da mulher era também um problema masculino, porque no prazer sexual, como no intelectual, é fundamental um encontro de iguais.

Na sua análise do soneto camoniano “Transforma-se o amador na cousa amada” recusa a leitura neoplatónica e defende que o que Camões está ironicamente a sugerir é que, a cumprir-se a integração da “cousa amada” não teria outro recurso se não o de satisfazer o seu desejo em si próprio (isto é, a masturbação). É um caso isolado ou valeria a pena reler outros poemas de Camões a esta luz?
Vale a pena reler muita coisa. A crítica tende a procurar semelhanças e acha que foi com base nos modelos italianos que os portugueses fizeram isto e aquilo, e então encontra o Dante neste e o Petrarca naquele, esquecendo-se de que Portugal, até ao final do século XIV, estava na vanguarda da Europa. As crónicas de Fernão Lopes podem ser lidas como um extraordinário romance, e se D. Duarte fosse mais inteligível - é urgente publicá-lo com um bom glossário -, veríamos que antecipa em muitas coisas Montaigne, e às vezes até é mais moderno, como ao lidar com aquilo a que hoje chamamos depressão clínica. Camões usa uma dicção formal com muito de Petrarca, mas para lhe dar uma volta, raramente se serve desses modelos para dizer as mesmas coisas.

Lembra neste livro os abundantes testemunhos que Pessoa deixou da sua admiração por Cesário Verde. Contudo, os pessoanos que mais têm sondado as origens da heteronímia inclinam-se para outros suspeitos, do Whitman encoberto em Caeiro de Eduardo Lourenço ao Caeiro criado por oposição a Pascoaes, agora proposto por António Feijó. O seu candidato é Cesário?
O Pessoa lia muito e tinha muitas influências, mas quer-se encontrar a fonte, o segredo, e não há segredo nenhum, ou há vários. Claro que o Whitman foi importante, e o Cesário é o único poeta português a quem ele chama 3 ou 4 vezes mestre. Também é verdade que a Pátria influenciou directamente a Mensagem, mas isso não significa que o Guerra Junqueiro determine o Pessoa. Quando as coisas começam a envolver grupos e polémicas, tendem a tornar-se um bocado dogmáticas.

Num dos textos sobre a geração do café Gelo, fala de um projecto de golpe, em 1958, que envolveria o Herberto Helder. Fica-se com curiosidade de saber mais.
Foi um pré-golpe Botelho Moniz [general que dirigiu uma intentona frustrada contra Salazar em 1961], em que estava também o Manuel Serra, que depois foi preso, e o José Pulido Valente, que veio a ser o modelo do Cardoso Pires para a Balada da Praia dos Cães. Eu era um miúdo de 21 ou 22 anos. A ideia era irmos buscar armas à Serra de Monsanto e aluguei um automóvel no meu nome, porque já tinha carta. Mas às cinco da manhã foi-nos dito, a mim e ao Herberto, que afinal não ia haver nada.

Os textos finais do livro, como os que abordam as tertúlias do café Gelo, têm todos uma assumida dimensão testemunhal. Num país onde as biografias de escritores nunca tiveram grande tradição, sentiu o dever de partilhar estas memórias?
É um pouco isso, mas também por ver nas gerações mais novas um certo interesse por esse grupo do Gelo, em parte por causa da mitificação do Herberto Helder. E há também essa bizarra descoberta do Luiz Pacheco, que era um tipo nojento e ao mesmo tempo admirável. Eu tenho o direito de dizer bem e mal dele, mas quem agora o mitifica e o torna asséptico, está enganado. Sou o último sobrevivente dessa geração e achei que devia corrigir alguns erros, como a associação ao surrealismo. Esse núcleo inicial de aspirantes a pintores e poetas não era surrealista, o que tinha em comum era uma atitude de dissidência, de não pactuar, quer em termos políticos, quer sociais, morais ou sexuais. Quando aparece lá o Cesariny, recebemo-lo muito bem: é nessa altura que ele publica os seus grandes livros, e nós admirávamos a sua poesia. Desse primeiro grupo, uma parte considerável saiu do país, uns por muito tempo, outros por menos, e quando regressaram já não eram bem do Gelo, eram mais reclusos, mais marginais. Os que ficaram cá é que se tornaram surrealistas de escola. Eu diria, talvez com arrogância, que a continuação mais interessante do Café Gelo aconteceu lá fora.

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