José Afonso, Alípio e a força da memória
As memórias de José Afonso e de Alípio de Freitas cruzam-se na vida e numa canção que celebra a dignidade humana.
Hoje, assinala-se uma morte, a de José Afonso, há trinta anos. Comemore-se, por isso, a sua vida. Há precisamente dez anos, numa destas crónicas, escrevi umas linhas que hoje aqui repito, sem lhes alterar uma vírgula: "José Afonso foi, ainda é, uma das grandes figuras do nosso tempo, desse que liga pouco ao calendário e se espraia por sobre os séculos. Não trabalhou, escreveu ou compôs pela fama, por um possível sucesso, sequer pelo dinheiro. Vivia remediadamente, a olhar por cima das coisas a que dava menos importância, trivialidades que não iam bem com o seu estado de espírito. Portugal, já o escrevi em tempos, castigou-o como professor, esgotou-o como músico, maltratou-o como homem. A tudo resistiu, porque era assim que via a vida: como um acto de resistência, uma revolta contra o vazio. A música que criou, mesmo quando a menosprezava (chegou a fazê-lo, nos tempos mais amargos), é hoje um cancioneiro belíssimo, luminoso, imaculado até nas imperfeições. Aos poucos, talvez os mais novos o descubram, com o mesmo espanto e avidez com que outros o descobriram ao tempo em que ia compondo. Para isso hão-de contribuir velhos discos, livros, reedições, obras abertas ao prazer de contínuas descobertas. E novas versões, recriações, que surjam a rasgar horizontes, renovando criativamente a matriz."
Agora que se assinala a data, por iniciativa da Associação José Afonso, sob o justo mote Insisto não ser tristeza (ele não suportava lamechices, ainda menos causá-las), ressurge nas livrarias o livro Zeca Afonso, o Que Faz Falta - Uma Memória Plural. A edição actual é da Guerra & Paz (a primeira, esgotada, era da Campo das Letras, com data de 2004, e tinha como co-autor José Fanha, que tem na actual edição também um interessante deporimento sobre José Afonso) e aos depoimentos iniciais juntaram-se alguns outros. Que ajudam a entender melhor o papel de José Afonso em determinados cenários ou períodos. Por exemplo, em Coimbra, onde tudo começou — e disso falam Durval Moreirinhas, Rui Pato ou Luís Goes (entretanto falecido, assim como outro dos participantes no livro, Almeida Santos). Ou na Galiza, e disso nos fala apaixonadamente Benedicto García Villar ("Talvez ninguém me tenha entendido como na Galiza", disse um dia José Afonso). Ou da Grândola como senha do 25 de Abril, e aqui a palavra cabe ao capitão do MFA Carlos de Almada Contreiras. Ou da importância de certa noite, ainda em 1973, onde ele foi cantar O que faz falta para que uma fábrica não fechasse e ela não fechou — era a Fábrica de Papel da Abelheira, do grupo Champalimaud, de onde saiu o papel para imprimir o livro Portugal e o Futuro, de António de Spínola, obra que, como recorda João Paulo Guerra, "forneceu a muitos dos Capitães de Abril uma bandeira e um ideário para derrubar o regime."
E há, no meio de tantas histórias, frases que ajudam a retratá-lo. José Jorge Letria, autor do livro e do extenso texto que serve de intróito aos depoimentos, diz que "o Zeca nunca teve idade. Tão depressa era meu irmão mais novo como meu pai"; Francisco Fanhais descreve-o como "um marginal no mais nobre sentido da palavra"; Carlos do Carmo sublinha nele, "para além do inquestionável talento, a ausência de batota, a pureza de um felino que, sem querer ser exemplo para ninguém, acabou por sê-lo de uma forma superior"; e, entre tantos outros, Alípio de Freitas chama-lhe "meu irmão de fé". Na resistência e na humanidade.
Lembram-se de Alípio de Freitas, a canção? Pois foi escrita a pensar num homem, que tinha sido padre e foi depois resistente e guerrilheiro no Brasil e ali estava preso e sujeito a cruéis torturas em plena ditadura militar. E o nome da canção era o nome desse homem, e ele fez na passada semana 88 anos, celebrados num almoço que juntou uma multidão de amigos, portugueses e brasileiros (e também da Galiza, cuja ligação a Alípio e a José Afonso permanece muito importante na vida de ambos). Pretexto, também, para lançar aqui pela primeira vez o seu livro Resistir é Preciso (Âncora), editado no Brasil pela Record em 1981, e onde ele recorda o que passou e o que tantos passaram nas masmorras da ditadura brasileira. As memórias de ambos, de Alípio e de José Afonso, cruzam-se na vida e naquela canção. Mas também no que os moveu: a defesa da dignidade humana. E isso, nos lugares onde a liberdade (social e política) era negada, assumiu a forma de irrecusável combate, hoje recordado pela força maior da memória e pela nobreza indomável do seu exemplo.
P.S.: Por lapso, não referi inicialmente nesta crónica a co-autoria de José Fanha na primeira edição do livro Zeca Afonso, o Que Faz Falta nem a presença de representantes da Galiza no almoço-homenagem a Alípio de Freitas. Fica feita, agora, essa justa correcção.