Uma mulher à beira de dar ao mundo um ataque de nervos

Com Una Mujer Fantastica, história de uma mulher a exigir o luto que a sociedade lhe nega, o chileno Sebastián Lelio sacode finalmente o concurso de Berlim.

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Às tantas, alguém pergunta ao chileno Sebastián Lelio, durante a conferência de imprensa de Una Mujer Fantastica, se ele tem uma qualquer atracção por mulheres à beira de um ataque de nervos ao pé de carros. No anterior Gloria, Paulina García, que ganhou o Urso de melhor actriz em Berlim 2013, farta de o namorado passar o tempo a cortar-se para ir apaparicar a ex-mulher, pega numa espingarda de paintball e toma lá disto. Em Una Mujer Fantastica (competição), Daniela Vega salta para cima de um carro aos gritos: "Eu quero o meu cão!" (Já lá vamos.)

O realizador ri-se e diz que não é de propósito, mas que gosta de mulheres fortes e dignas e Marina, a heroína do novo filme, é uma mulher forte e digna. O que convém aqui dizer, no entanto – e não estamos a estragar nada porque todos os materiais públicos o dizem – é que só ao fim de 30 minutos de filme se revela que Marina é uma mulher transgénero que no bilhete de identidade ainda se chama Daniel, e que um ano antes vivia com Orlando, homem mais velho e heterossexual que trocou a família para ficar com ela. Orlando morre ao fim de dez minutos de filme, literalmente nos braços de Marina, e é o início dos problemas. Já não bastava ser “a outra” e ser muito mais nova; como também é transgénero, Marina é vista como uma pária. Como diz Daniela Vega, a actriz que a interpreta, para Marina tudo é difícil, e por isso ela encontra poesia onde não existe nada, dignidade onde ela não está. Não é, nem de longe nem de perto, uma mulher à beira de um ataque de nervos; é só uma mulher que sabe o que quer e não tem problemas a dar aos outros ataques de nervos.

Marina não é a única mulher forte do concurso de Berlim este ano – estamos a lembrar-nos da Félicité cantora de Kinshasa que empresta o nome ao filme de Alain Gomis –, mas esta Mulher Fantástica, co-produzida por Pablo Larraín (que já produzira Gloria com o irmão, Juan de Dios) e Maren Ade (realizadora de Toni Erdmann e co-produtora de Miguel Gomes), é o primeiro sopro de vida numa competição que, até agora, correu morna e inerte. (É verdade que os filmes mais aguardados, de Teresa Villaverde, Aki Kaurismäki e Hong Sangsoo, ainda estão por vir.) The Dinner, do americano Oren Moverman, adaptação do romance de Hermann Koch com Richard Gere, Laura Linney, Steve Coogan e Rebecca Hall, foi literalmente arrasado (e chamou mais a atenção pela diatribe anti-Trump de Gere na conferência de imprensa). Félicité tem sido considerado “Dardenne light”; Wild Mouse, do austríaco Josef Hader, é divertido mas inconsequente; chamou-se “ridículo” a Spoor, de Agnieszka Holland; só o húngaro On Body and Soul, de Ildikó Enyedi, intrigou, pela ambição mais do que pelo resultado.

E eis Una Mujer Fantastica, com os seus ecos de Almodóvar tardio (negados por Lelio, que cita abertamente Louis Malle mas podia também ter falado de Cassavetes que não seria descabido) e o modo como actualiza a lógica do melodrama clássico, a electrizar um festival onde alguns dos melhores filmes vistos (Golden Exits, de Alex Ross Perry, Vazante, de Daniela Thomas, Le Jeune Karl Marx, de Raoul Peck) estavam inexplicavelmente fora de competição. Em grande parte devido à performance destemida de Daniela Vega, que faz mais do que apenas tomar conta do filme – ela é o filme, a sua alma, o seu corpo, a sua energia, o seu tudo, e Lelio dá-lhe todo o espaço e todo o tempo para o fazer, com a mesma generosidade com que deixou Paulina García ser Gloria.

Voltamos à conferência de imprensa, e palavra ao actor Francisco Reyes, que interpreta Orlando, o homem que trocou a família burguesa e de vistas estreitas pela simplicidade da vida com alguém determinado: Marina “é apenas uma pessoa que tenta viver honestamente a sua vida e a quem mais nada se pode pedir”. "O filme parece ser muito simples, mas a verdadeira pergunta é: o que é que o espectador sente a ver isto? O que é que lhe acontece realmente? E a resposta tem de ser honesta."

Sebastián Lelio fala de oscilar entre a “existência e a ausência de informação”: Una Mujer Fantastica não sente que tenha de explicar tudo, joga leal com o espectador, vai revelando as suas reviravoltas à medida que é necessário – nem um minuto antes, nem um minuto depois. Quando tem de ser. E o triunfo de Lelio é o de não mudar nem um milímetro o modo como filma a sua actriz depois de nos revelar a sua identidade de género: não foi ela que mudou, fomos nós que mudámos o nosso olhar sobre ela, o filme bascula por causa disso. “Como pode ser”, pergunta Francisco Reyes, “que numa sociedade civilizada como a nossa ainda existam preconceitos como estes?”

E isso levanta a questão na qual o filme entronca: esta é essencialmente a história de uma mulher que tem de fazer o luto de uma relação. O facto de ela ser transgénero é tão incidental aos acontecimentos como lhes é central: se Marina tivesse nascido mulher, a reacção da família não seria tão diferente assim, as “outras mulheres” nunca são bem vindas no seio do núcleo familiar destruído. "O filme não é uma bandeira de luta, é uma história de amor", diz Daniela Vega, e sabe o que diz porque a actriz é, ela própria, transgénero e passou por aquilo que Marina está a viver. "Ela está preparada para o mundo,” explica Sebastián Lelio. “O mundo é que não está preparado para ela."

Algo nos diz que, depois de Berlim, o mundo vai abrir-lhe as portas. Afinal, pelo fim de Una Mujer Fantastica, Marina conseguiu ficar com o cão. 

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