O ano em que o trabalho precário foi assumido como indigno pelo Estado
Em 1997 assistiu-se ao culminar de um processo que envolveu sindicatos e o governo PS liderado por Guterres, com a integração na Administração Pública de cerca de 40 mil trabalhadores com falsos recibos e contratos a prazo. Sónia Rapaz foi um deles.
Sónia Rapaz tinha 20 anos quando entrou, quase sem querer, para a Administração Pública. Quase sem querer porque não foi ela quem teve a iniciativa, e porque a vontade não era muita. Ao contrário do que sucede agora, a questão da inclusão de trabalhadores precários no Estado em 1997 não foi um assunto de grande relevo noticioso, não obstante o enorme impacto na vida de milhares de pessoas. Uma delas foi, precisamente, Sónia Rapaz. Em 1995, tinha então 18 anos, arranjou um emprego na secção do IVA do Ministério das Finanças. Função: microfilmar, com posterior verificação de dados, documentação referente a este imposto desde a sua introdução em 1986.
A descrição do local de trabalho é semelhante a uma versão moderna dos tempos industriais: salas repletas de caixotes com papéis, sem janelas e luz do dia, mas com muito pó. Dois anos depois, recorda Sónia, “ainda estava a tratar da papelada do IVA, num tipo de trabalho indiferenciado e sem qualquer tipo de recompensa emocional”. Por isso, hesitou quando surgiu a hipótese de passar a efectiva, e ter um empregador para o resto da vida.
A questão com que Sónia se debateu naquele momento começara a surgir cerca de um ano antes, no âmbito de negociações entre o governo socialista liderado por António Guterres e os sindicatos. O primeiro resultado formal dessas discussões foi o decreto-lei n.º 81-A/96, de Junho, através do qual se prorrogaram contratos a termo certo e celebraram-se este tipo de contratos com pessoas que estavam com falsos recibos verdes.
Assumia então o governo que se assistira, nos anos anteriores, “à proliferação de situações irregulares na Administração Pública cuja quantificação não é fácil nem pacífica”. “Em boa parte dos casos”, esses recibos verdes e contratos a termo visavam a “satisfação de necessidades permanentes dos serviços e prolongam-se, muitas vezes ininterruptamente, de há vários anos”, esclarecia o diploma.
Ao mesmo tempo, havia casos em que se verificavam interrupções para “ultrapassar os limites da lei” e “criar uma aparência de descontinuidade”. Era o caso de Sónia, que assinava um novo contrato de seis meses poucos dias após o anterior ter terminado. “O recurso a esta prática de emprego é insustentável no plano da legalidade, no plano da moral e no plano da dignidade do Estado, enquanto empregador, e dos cidadãos, enquanto trabalhadores”, sublinhava o decreto-lei.
Um ano depois, Sónia era confrontada com a nova etapa do diploma de 96, e uma decisão: ser ou não funcionária do Estado? A imagem da sala do IVA não ajudava a uma decisão favorável, e o objectivo era ser arquitecta, mas fixou-se no conselho do pai: Entra para Estado, tira o curso, “e depois decides o que queres fazer”. Afinal, era “um emprego para a vida”. E assim foi. Sónia, tal como muitas outras pessoas, entrou para a função pública, conforme ficou estabelecido no decreto-lei 195/97. “Os concursos necessários à integração do pessoal são obrigatoriamente abertos, independentemente da existência de vagas”, estabelecia-se no diploma assinado por Guterres em Julho de 1997. O processo, que visava os contratos e recibos verdes referidos na lei 81-A/96, só terminou em Janeiro de 1999.
No caso de Sónia, que se juntou a muitos outros funcionários na mesma situação, houve ainda a necessidade de recorrer aos tribunais, já que o Estado não queria reconhecer os direitos anteriores à efectivação do diploma, o que, no seu caso, equivalia a dois anos. Ganharam os trabalhadores.
Hoje, aos 41 anos, casada e mãe de dois filhos, Sónia não se arrepende da decisão que tomou em 1997. Teve a oportunidade de tirar o curso de arquitectura, e de exercer a profissão dentro da Administração Pública. Graças ao sistema de mobilidade interna, não tem estado sempre no mesmo sítio, e desde logo saiu dos impostos. Esteve na Direcção-Geral do Turismo, daí passou para o LNEC, e, depois, transitou para o Instituto de Acção Social das Forças Armadas.
Desde Novembro do ano passado está no IMT, ligada ao programa de melhoria das instalações da Administração Pública. O gosto pelo património edificado, e sua manutenção, que tem vindo a apurar, faz com que almeje agora uma experiência na Direcção-Geral do Património Cultural. O tempo da sala do IVA já vai longe.