Arons de Carvalho lava mais branco
A história da ERC durante os governos de José Sócrates é de tal forma escabrosa e protectora da sua actuação que ela deveria ter sido encerrada no dia seguinte à sua saída do poder.
Alberto Arons de Carvalho assinou há dias no PÚBLICO um texto sobre a Entidade Reguladora para a Comunicação Social no qual, à semelhança do seu amigo José Sócrates, tenta sem um pingo de pudor reescrever o passado, louvando a independência da ERC ao longo dos últimos 11 anos. “Desde o início da ERC em 2006”, escreve Arons de Carvalho com uma lata que vai de Lisboa a Macau, “constata-se que não existe qualquer alinhamento partidário ou político ideológico.” Com “uma única excepção”, diz ele: “A deliberação, em Junho de 2012, por queixa do jornal PÚBLICO contra o então ministro Miguel Relvas, em que a divisão entre os dirigentes da ERC correspondeu à sua origem partidária.” Juro que ele escreveu isto. Para Arons, a ERC foi sempre absolutamente independente nos tempos de Azeredo Lopes e de Estrela Serrano, tendo cedido apenas à partidarite no caso Miguel Relvas, já durante a presidência de Carlos Magno. A indecência de um artigo como este não pode passar em claro.
Sejamos absolutamente cristalinos: a ERC, desde o maldito dia em que foi inventada, só foi independente e unânime quando foi preciso deliberar sobre a exibição do filme Grande Moca Meu – A Fuga às duas da tarde ou sobre o conteúdo da reportagem A Casa da Mãe Kikas (dois exemplos reais, escolhidos ao acaso). Sobre temas tão prementes quanto estes a ERC, de facto, decidiu por unanimidade. E como é esse o género dominante nas “perto de 2500 deliberações” produzidas entre 2006 e 2016, não chega a ser digno de espanto que 89% das decisões tenham sido tomadas sem engulhos, como se orgulha Arons de Carvalho. Sim, é verdade: Grande Moca Meu e A Casa da Mãe Kikas não dividiram o conselho regulador. Mas quando aquilo que esteve em causa não foi a Mãe Kikas, mas antes Miguel Relvas ou José Sócrates, a ERC sempre se mostrou extraordinariamente disponível para lamber a mão ao dono. O conselho regulador não viu qualquer pressão ilegítima no caso Miguel Relvas, como não viu qualquer pressão ilegítima em todos os casos (e foram muitos) envolvendo directa ou indirectamente José Sócrates. Mais: afirmar que o único acontecimento que deslustra a magnífica reputação da ERC ocorreu em 2012, insinuando dessa forma que entre 2006 e 2011 a ERC foi um prodígio de equilíbrio e independência, é uma mentira tão descarada que Arons de Carvalho deveria ter vergonha de assinar o seu texto como professor universitário.
A história da ERC durante os governos de José Sócrates é de tal forma escabrosa e protectora da sua actuação que ela deveria ter sido encerrada no dia seguinte à sua saída do poder. Arons de Carvalho fala em deliberações unânimes quando, na esmagadora maioria das decisões envolvendo Sócrates, o vogal Luís Gonçalves da Silva, indicado pelo PSD, votou contra e com badaladas declarações de voto. Em Setembro de 2010, Gonçalves da Silva acabou mesmo por bater com a porta, na sequência do caso Manuela Moura Guedes. Talvez Arons já não se recorde do que ele disse à saída. Eu recordo-me: “A ERC foi e é, em muitas situações, um obstáculo à liberdade de imprensa.” Acrescentou ainda que em todos os processos “em que estava em causa o poder político”, aconteceram “verdadeiras entorses” às “normas procedimentais”. É a isto que Arons chama “a independência do regulador face ao poder ou aos partidos políticos”. Nós levámos com Sócrates durante seis horríveis anos. Era o que faltava que tivéssemos de levar ainda com Arons de Carvalho a reescrever a sua história.