András Schiff, a música acima do intérprete

De regresso à Gulbenkian na qualidade de instrumentista de câmara, maestro e solista, o pianista húngaro András Schiff promete colocar novos desafios ao ouvinte.

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András Schiff DR

Conhecido pelas suas interpretações de grande rigor estilístico, imaculada transparência e luminosidade, o pianista húngaro András Schiff é um músico centrado na essência das obras e no pensamento dos compositores em detrimento da personalidade do intérprete. Com uma discografia notável a solo, na qual sobressai especialmente Bach, mas também Beethoven, Schubert ou Bartók, tem-se distinguido igualmente no campo da música de câmara e, mais recentemente, na qualidade de maestro. É nestas três vertentes que teremos o privilégio de o escutar na Gulbenkian estas quarta e quinta-feira (às 19h), respectivamente num recital de câmara dedicado a Beethoven, Brahms e Dvorák, e num programa com Sinfonias e Concertos para Piano de Haydn e Mozart, em conjunto como seu agrupamento Cappella Andrea Barca. A 12 de Fevereiro regressa para um recital a solo com um programa de que muito se orgulha, conforme disse ao PÚBLICO numa entrevista por e-mail.

Como selecciona os instrumentistas para a Cappella Andrea Barca? Que qualidades procura nos músicos que trabalham consigo?
Todos os meus músicos amam a música. São normalmente instrumentistas de câmara, na maioria dos casos tocam em quartetos. Além das qualidades musicais, o elemento humano é muito importante, somos amigos e adoramos estar juntos. Não há espaço para o egoísmo ou o individualismo, estamos juntos na procura da interpretação certa. É uma grande alegria e queremos comunicar essa alegria ao público.

Na escolha dos programas que apresenta em Lisboa com a Cappella Andrea Barca procurou estabelecer algum diálogo estilístico ou fio condutor?
No programa de música de câmara [com o Quinteto com Piano op. 16 de Beethoven; o Quinteto para Cordas nº2, de Dvorák; e o Quarteto com Piano nº2, de Brahms] pretendo mostrar a qualidade dos meus músicos. Não há muitas orquestras no mundo nas quais todos os membros possam tocar música de câmara ao mais alto nível. O programa orquestral [com a Sinfonia nº 38, Praga, e o Concerto para Piano nº23, de Mozart; a Sinfonia nº101, O Relógio, e o Concerto para Piano em Ré Maior Hob.XVIII:11, de Haydn] é um diálogo entre Haydn e Mozart, dois contemporâneos muito diferentes entre si. Mozart foi um enviado do céu, enquanto Haydn é muito mais terreno. Mozart é quinta-essência como compositor de ópera, é um homem do teatro; Haydn é um grande filósofo, um homem sábio com um maravilhoso sentido de humor. Mozart não precisa de “publicidade”, é ainda incompreendido e subestimado.

O alinhamento do seu recital de piano a 12 de Fevereiro alterna Bach (Invenções a três vozes) com Bartók (Suites op. 14 e Ao ar livre), seguindo-se a Sonata 1-X-1905, de Janácek, e a Sonata nº1, op. 11, de Schumann. Que novas perspectivas pretende trazer à luz com esta original combinação?
Este é o segundo de três programas construído em torno destes quatro  compositores. Estou muito orgulhoso deles porque constituem uma combinação muito pouco usual, mas que faz perfeito sentido. Na primeira parte Bach e Bartók, estão justapostos, mostrando como Bartók reverenciava Bach e aprendeu imenso com ele. Claro que Bartók usa uma linguagem muito diferente mas as ideias de polifonia e contraponto são as mesmas. Com Janácek e Schumann temos um segundo diálogo: peças que são chamadas "sonata” mas que são muito livres na forma, na verdade podemos considerá-las fantasias. A obra de Janácek é uma peça política, escrita a partir de um evento trágico: o assassinato de um trabalhador checo [Frantisek Pavlik] pela polícia numa manifestação a favor de uma universidade nacional. O opus 11 de Schumann é um apaixonado poema de amor para a sua amada Clara.

Tem afirmado que “se um compositor não tem relação com Bach” não lhe interessa. Quais são os compositores que não lhe interessam?
Eis alguns exemplos: Liszt, Wagner, Berlioz, Richard Strauss, Mahler. Sei que todos são grandes compositores mas não gosto da sua música. Peço desculpa, não somos obrigados a gostar de todos os compositores!

Na sua opinião, quais são os marcos da história da interpretação da música de Bach no último século?
Bach é um compositor tão grande — o maior! — que a sua música é inesgotável. Todos os músicos tentam interpretá-lo, com resultados variados. A música ganha sempre. Para mim Pablo Casals foi o músico que melhor compreendeu o seu espírito.

Gravou Beethoven e Schubert em instrumentos de 1820. Contudo, para Bach usa o piano moderno. Alguma vez sentiu a necessidade de usar o cravo? Até que ponto o movimento da “interpretação historicamente informada” influenciou a sua decisão de explorar instrumentos de época?
O cravo não me agrada muito, embora vá tocar o Concerto Brandeburguês nº 5 em cravo. Mas adoro o clavicórdio e toco frequentemente nele em casa. Contudo, não é um instrumento de concerto [devido ao reduzido volume sonoro]. No piano é possível combinar o nosso tempo com o conhecimento que adquirimos através do movimento da interpretação em instrumentos de época. Procuro desse modo uma maneira historicamente informada de tocar Bach. Também a utilização de  instrumentos de teclado antigos para Beethoven, Mozart e Schubert me deu grande prazer.

Além das suas composições, estudou as gravações de Bartók como pianista. Que conclusões retirou dessa experiência?
Bartók era um pianista maravilhoso, adoro a sua maneira de tocar não só a sua música mas também outros repertórios. Nunca é percussivo, mas muito claro e luminosamente transparente. Usa o “rubato” subtilmente e toca como se estivesse a falar, parlando. As suas duas mãos não estão matematicamente juntas, ele é ainda um filho do século XIX, faz os acordes arpejados de uma maneira genial. A música de Bartók nunca é brutal, apenas soa assim nas mãos de pianistas menores.

Para além de Kurtág, que foi seu professor, quais são os compositores do nosso tempo que mais admira?
Heinz Holliger e Jörg Widmann. Ambos são músicos universais, compositores e intérpretes.

Que outras artes o fascinam para além da música?
A literatura, a arquitectura, as artes visuais, o teatro e o cinema. Em todas podemos encontrar conexões com a música.

Devido à orientação política do  governo de Viktor Orban, decidiu não voltar a tocar na Hungria. Como tem sido a sua relação com os seu país natal?
A última vez que toquei na Hungria foi em 2010, quando a minha mãe morreu. Infelizmente a situação apenas piorou.

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