A fabulosa rêverie de Miguel Loureiro
É um recital em andamento, chama-lhe Miguel Loureiro, autor e encenador de Paris > Sarah > Lisboa. No São Luiz, entre 2 e 11 de Fevereiro, Beatriz Batarda transforma-se numa Sarah Bernhardt que é a imagem de um desejo de rumar a um tempo que já não existe.
Miguel Loureiro não resiste a papéis de reis e de imperadores. Acenem-lhe com uma figura imponente, majestática, rodeada da sua corte, e a sua atenção estará conquistada. É o seu type cast, diz, gracejando com as suas próprias inclinações. Mas basta vê-lo em produções como Os Últimos Dias da Humanidade ou O Inimigo do Povo para saber que a sua latitude de representação vai muito além deste figurino que lhe cai na fraqueza, um pouco como acontecia com Sarah Bernhardt e a sua especialidade – “a longa agonia”. Convidado a apresentar-se em 2016 no programa Chantiers d’Europe, do Théatre de la Ville, em Paris, foi-lhe pedido não apenas que levasse consigo Do Natural, encenação sua que colocava em cena o livro de W.G. Sebald, mas também que escrevesse uma peça de 20 minutos sobre a lendária actriz parisiense. “Como no Théâtre de la Ville está aquele que se supõe que era o camarim dela, o recital que foi apresentado em Paris teve o surplus de ser no seu camarim, com a banheira e o toucador dela.”
Esta oportunidade de escrever as palavras que haviam de habitar o mesmo espaço que Sarah Bernhardt no seu apogeu em finais do século XIX não podia caber melhor num homem que confessa gostar muito do “gesto arqueológico em teatro”. Na verdade, sempre que Miguel Loureiro se vê fustigado pela estafada interrogação de qual a actualidade de qualquer peça que possa desenterrar e colocar em palco, enquanto actor ou encenador, a sua exasperação com a ditadura do presente é óbvia. Pode não chegar a fazê-lo, mas a sua vontade é a de responder “O que quero é regressar para o passado e abandonar qualquer tipo de actualidade”. “Parece que só dão dinheiro, condições de produção e materiais se houver uma sineta de actualidade”, lamenta. “Mas o mundo não é tão rasca? Não é preferível alienarmo-nos? Vamos então construir uma fabulosa rêverie para os confins do passado – isso é que é maravilhoso.”
Crente, portanto, no teatro como lugar de alienação pura e dura, voou até Paris em Fevereiro passado, foi espreitar a actriz francesa (Astrid Bas) que acabou por dar o corpo à sua Sarah Bernhardt, dedicou-se a pesquisar a vida do “monstro sagrado” – expressão cunhada por Cocteau para designar Sarah – e a enfiar a cabeça numa série de livros e de referências. Depois de se encher de toda a espécie de leituras sobre o seu objecto de escrita, sentou-se e desatou a escrever. “E foi-me saindo o que mais me impressionou”, diz. “Ainda que com a muito pouca experiência que tenho em comparação, fui tentando pôr-me no lugar dela – ainda por cima uma pessoa quer sempre pôr-se no lugar de Sarah Bernhardt ou de um outro grande. O que fiz na escrita foi também projectar-me um pouco. Quando temos pessoas assim, tão maiores do que a vida, é sempre um sítio de confluência de nós todos.”
No camarim do Théâtre de la Ville, a presença de Sarah Bernhardt funcionava como um fantasma – da própria, mas também de um teatro passado, uma vez que já no final da sua carreira, ao mesmo tempo que o seu corpo ganhava volume, a actriz entrava em choque com a afirmação do teatro moderno e deixava de estar sintonizada com o presente. Miguel Loureiro reclama também a escrita de Paris > Sarah > Lisboa como erguendo-se “sobre uma fantasmagoria que nos habita, uma outra forma de fazer teatro, mas que serve também para questionar a forma como fazemos agora” e da qual, também ele, frequentemente discorda. “No final da carreira ela estava desactualizadíssima – se já não estava no início, pela forma bastante conservadora com que encarava as coisas. O que interessa é que toda essa fobia pela novidade era posta em causa perante o arrebatamento daquele sortilégio, daquela voz e do enigma que ela é.”
O magnetismo em torno da figura de Sarah Benhardt foi tal que, a par das suas posições conservadoras no terreno estético, por ser “uma mulher absolutamente espantosa nos costumes, as feministas queriam tomá-la como bandeira”. “Ela nunca se importou que a tomassem como símbolo, mas não se comprometeu com nada.” Era uma alma livre, desapegada, capaz de se tornar um modelo libertário, motor de fantasia para gente como Victor Hugo ou Oscar Wilde e preencher “um potencial erótico quando era de uma magreza chamada gótica” – o autor ri-se ao partilhar a piada que se dizia a respeito da actriz, que seria “tão magra, tão magra que quando entrava na banheira a água descia”. Depois de cair no esquecimento parisiense, a sua inesgotável energia levá-la-ia a fazer digressões pelos sítios mais espantosos, dos confins do Pacífico até às reservas índias ou aos salões de cowboys.
Na versão alargada (cerca de 50 minutos) que agora se estreia no Teatro São Luiz, em Lisboa (2 a 11 de Fevereiro), a fantasmagoria mantém-se. Sarah Bernhardt passa a servir-se do corpo e da voz de Beatriz Batarda para percorrer o espaço da sala onde a actriz chegou a apresentar-se em 1899 – e a placa evocativa desse momento, no foyer, não deixa esquecer –, ainda o São Luiz era Dona Amélia. (Beatriz Batarda era a Berenice, de Jean Racine, quando Miguel Loureiro a conheceu no elenco da encenação de Carlos Pimenta, em 2005; Sarah Bernhardt impôs-se também com textos de Racine.) Nesse mesmo foyer, Sarah / Beatriz começa por dar conta da azáfama constante em que vivia no teatro, subindo depois para junto de um dos janelões onde, deitada numa chaise longue, vai desfiando com languidez listas de cores, materiais, adereços e jóias. Depois, há-de fazer exercícios vocais de aquecimento para o palco, alguns criados pela própria e que ainda hoje se aprendem nos conservatórios.
Das listas elaboradas em Paris, Sarah passa por um excerto de uma peça de Cocteau e dedica-se depois a antecipações do seu tempo em Lisboa, que Miguel Loureiro escreveu imaginando-a na sua viagem de comboio a caminho da gare do Rossio, fantasiando o que teria à sua espera. “Depois do fascínio pela figura, tive de escolher por onde pegar”, conta. Com uma tarefa “tão assustadora” em mãos, quis tentar uma “afloração do enigma” que Bernhardt continua a ser. O recital – um formato em que crê haver “maior aceitação de uma certa licenciosidade de quem escreve” – em andamento no São Luiz, com estação final no Jardim de Inverno, acontece ao cair da noite, nesse período de indefinição do dia e em que tudo é menos claro, num curto espaço em que nada parece, momentaneamente, impossível.
Coleccionador do mundo
Encontramo-nos uma sexta-feira no Teatro São Luiz. Miguel Loureiro tem uma camisola atravessada por riscas horizontais cor-de-rosa. Um pequeno acidente, admite. Cor-de-rosa é uma cor que só costuma usar à quarta-feira. “Tenho um esquema muito legalista da minha vida”, confessa acerca deste pormenor e da sua generalizada obsessão por listas e por escritores que gostam de listas – e cita Georges Perec a título de exemplo. As listas, acredita, são um outro factor de aproximação entre si e Sarah Bernhardt. “Ela era uma caçadora de homens e de mulheres, era muito sorvedora, tinha esta coisa de ser a primeira, a única, a exclusiva”, concretiza. “As listas pertencem sempre a uma visão de coleccionador do mundo e a colecção é sempre uma tentativa de apreensão da totalidade do mundo – que nos vai estar sempre a escapar e isso é que é perfeitamente patético e desfasado.”
Esta organização que invade os mais variados campos da sua vida manifesta-se tanto na forma metódica como escreve “sempre quatro, cinco ou seis linhas por dia”, à semelhança do que faz a decorar texto – dividindo e distribuindo previamente as linhas pelos dias que se seguem e não evitando ficar “contente ou chateado” se tem mais ou menos texto do que os outros actores, confessa no final de uma gargalhada. Sabe o sítio exacto de cada coisa em casa, a que horas passeia os cães, a que dias da semana é bom para jantar com amigos e diz-se, “ao contrário de outros libertários da nossa cena que são contra o Papa, a favor da ecologia e dos animais, e depois no palco são uns déspotas”. “Normalmente, até são pessoas que estão sempre com a liberdade na boca. No teatro há muita inclinação para o despotismo e é das artes que mais exercita e põe a ridículo os déspotas em palco, mas cai sempre na contradição. No meu caso não, sou mesmo organizado [risos], organizo tudo, às vezes até penso que sou doente.”
O teatro que Miguel Loureiro encena e escreve tem em comum a ideia de responder a um espaço que não vê preenchido como espectador. No caso de Paris > Sarah > Lisboa, há um fio que provém de Do Natural e se estende até esta nova forma “de pequena escala, de aproximação, de câmara, com universos um bocadinho claustrofóbicos e huis clos” que tanto lhe agrada. Acresce que tem uma atracção por estas “ante-peças, que ainda não reúnem todo o esplendor para ser uma peça de teatro, mas se ajustam a pequenos actos teatrais”. Tal como acontecia na tragédia grega, “o ciclo das três tragédias e depois um drama satírico para desanuviar”, exactamente o espaço que Loureiro tenta aqui ocupar.
Desinteressado da prática teatral como veículo temático, Miguel Loureiro molda um teatro que se diria pairar sobre a realidade, delicado e precioso, tocando numa poesia que escapa ao dia-a-dia. Um teatro que, como vê em Sarah Bernhardt, deve permitir-se ter “um bocadinho de charme, ser salão de final do século XIX”. Esse anacronismo que advoga em causa própria, fá-lo falar do teatro como a sua família e da enunciação do que seria para si uma companhia ideal: teria duas peruqueiras inglesas, três aderecistas, conselheiros literários, ouviria pessoas da Filosofia e da Teologia, uma equipa enorme que jantaria sempre junta depois de ensaios e espectáculos. Como se isto do teatro não fosse encarado como uma profissão, mas como a própria razão de estar vivo.