Indo eles, indo eles a caminho… da Antárctida
Na campanha do Programa Polar Português deste ano ao continente branco há 22 cientistas, de sete projectos de investigação, e as alterações climáticas dominam grande parte deles.
Das ilhas do Rei Jorge, Decepção e Livingston (todas no arquipélago das Shetland do Sul) até às ilhas de Amsler e de Doumer (no arquipélago de Palmer), passando pela Baía Cierva, na costa de Danco (quase da extremidade da Península Antárctica) – eis os vários locais para onde têm partido cientistas da campanha portuguesa deste ano ao continente branco. Ao todo, entre o início de Janeiro e o de Fevereiro, a Península Antárctica recebe 22 investigadores do Programa Polar Português (Propolar), agora que lá é Verão.
É a sexta campanha, financiada em 172.500 euros pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. E, tal como nas anteriores, Portugal contribui para a logística científica colectiva na Antárctida ao fretar um avião que transportou na última quinta-feira 122 cientistas e técnicos de vários programas antárcticos, numa viagem de ida e volta entre Punta Arenas, no Sul do Chile, e o aeródromo da ilha do Rei Jorge. Até 2011, os cientistas portugueses limitavam-se a ser convidados nas bases de outros países e dependiam da sua boleia para lá chegarem. Como Portugal não tem infra-estruturas permanentes na Antárctida, as campanhas portuguesas têm de usar as bases de outros países e assentam na cooperação com países como a Argentina, Bulgária, Brasil, Chile, China, Espanha, Estados Unidos, Coreia do Sul e o Uruguai. O voo é assim uma “troca” pelo apoio de vários países.
Até Março, quando terminar no terreno a campanha portuguesa, os 22 cientistas (19 portugueses e três espanhóis) estarão espalhados por vários pontos da Península Antárctida, a grande língua de terra na parte oeste do continente com mil quilómetros de comprimento, e ilhas nas proximidades. Dedicar-se-ão a sete projectos de investigação, em que a questão das alterações climáticas é dominante ou pelo menos cruza-os todos. O que se passa nas regiões polares não está longe de nós, pelo contrário influencia o clima em todo o planeta.
Solo e peixes
Por exemplo, Gonçalo Vieira, do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa e que é o coordenador do Propolar, há muito que estuda o permafrost, o solo que se mantém sempre congelado ao longo do ano, seja Inverno, seja Verão, e quer saber até que ponto está a ser afectado pelas alterações do clima. Até há cerca de década e meia pouco se sabia sobre o solo congelado na Antárctida. Criou-se então uma rede mundial de monitorização, e os dados recolhidos pela equipa de Gonçalo Vieira em várias ilhas da Península Antárctica, por exemplo em perfurações onde ficam termómetros e outra instrumentação, contribuem para essa rede.
“Esta campanha mostra a maturidade que o programa está a atingir”, diz Gonçalo Vieira sobre o Propolar, iniciativa que também tem projectos de investigação no Árctico e está a comemorar os seus dez anos. “Há vários projectos de consolidação – é o caso da minha rede de monitorização do permafrost. Continuamos a fazer a monitorização de várias estações e a recolher dados”, refere Gonçalo Vieira, que partirá a 3 de Fevereiro para o arquipélago de Palmer.
Já a equipa do espanhol Marc Oliva, também do IGOT, procura reconstituir o paleoambiente na região nos últimos milénios. Em campanhas anteriores recolheu amostras de depósitos de lagos – e este ano, na ilha de Livingston, vai obter amostras de afloramentos de rochas e de moreias (o amontoado de pedras que os glaciares deixam para trás ao descerem), que serão datadas. “Estas amostras vão permitir conhecer melhor a retracção dos glaciares. Vão permitir fazer a ligação entre os sedimentos lacustres e a parte terrestre emersa”, explica Gonçalo Vieira. “A tendência global dos últimos 7000 anos nesta área tem sido para o retrocesso dos glaciares e o aquecimento. Isto vai permitir perceber os momentos em que os glaciares encolheram e até avançaram ligeiramente.”
Por sua vez, a equipa de Pedro Pina (do Instituto Superior Técnico de Lisboa), que já está na ilha do Rei Jorge, na base chilena, vai dedicar-se aos círculos de pedras que surgem na Antárctida marítima. Ou melhor, este projecto vai fazer a cartografia dos círculos de pedras usando imagens de ultra-elevada resolução captadas por um drone. “Esses círculos de pedra permitem perceber a dinâmica do solo gelado”, explica Gonçalo Vieira.
Também fará a cartografia da vegetação daquela área em muito alta resolução, para depois se fazerem comparações com o que aparece nas imagens de satélite. E, assim, fazer a calibração das imagens captadas do espaço, que, comparativamente com as imagens recolhidas no terreno, têm erros e limitações. Desta forma, procura-se aprofundar a análise sobre como as alterações climáticas têm tido repercussões na vegetação na região – nos líquenes, musgos e nas plantas gramíneas.
O permafrost é também o centro das atenções de António Correia, da Universidade de Évora. Na ilha do Rei Jorge, onde já está, e depois na ilha de Livingston, para onde seguirá, António Correia faz estudos de geofísica, para verificar se o permafrost está a aumentar ou a diminuir nessas áreas, onde já tinha feito o mesmo em 2009, 2012 e 2013.
Ainda o permafrost: Pedro Ferreira, do Laboratório Nacional de Energia e Geologia, coordena um projecto de caracterização geológica e geoquímica em duas penínsulas da ilha do Rei Jorge que ficam livres de gelo no Verão da Antárctida. Será feita a cartografia detalhada da área e, no final, este trabalho cruzar-se-á com os trabalhos do solo congelado em permanência. “Servirá de base para a modelação da distribuição e temperatura do permafrost”, diz Gonçalo Vieira.
Os efeitos do mercúrio no fitoplâncton e no zooplâncton ocupam a equipa de Carla Gameiro, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Neste caso, o mercúrio provém de uma fonte natural – na ilha Decepção, onde vai decorrer a investigação, há fontes vulcânicas de mercúrio. Que efeitos terá o mercúrio nas respostas fisiológicas das comunidades que constituem a base das cadeias alimentares marinhas, como o fitoplâncton e o zooplâncton?
Por fim, ainda o clima: como é que os peixes antárcticos, que não congelam, se vão adaptar ao aquecimento global e a mudanças na temperatura da água do mar? Como lidarão com o aumento da temperatura e como será a sua resposta imunitária?
Pedro Guerreiro e Cármen Sousa, do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, vão pescar estes peixes – à cana –, colocá-los em tanques e fazer experiências. Primeiro na ilha do Rei Jorge, na base chinesa Grande Muralha, onde se encontram há cerca de uma semana, depois na ilha de Doumer. Já começaram a fazer um diário de campanha público, onde relatam as aventuras do que é estar na base chinesa: “Como em todas as bases antárcticas, o calçado utilizado no exterior fica à entrada dos edifícios. É que dependendo do tipo de investigação e zonas percorridas, as nossas botas podem vir molhadas, por neve, gelo, água ou água salgada, enlameadas, cheias de lodo, com restos de vegetação, com dejectos de pinguim, ou com misturas avulsas destas várias possibilidades.” E mostram sapatos amontoados: “Cada vez que entramos, descalçamo-nos, e cada vez que saímos, calçamo-nos! No interior dos edifícios a rotatividade dos chinelos chega a ser desconcertante, e nem sempre os há para todos, com caixas cheias de peças avulsas a aparecer cada vez que aumenta o número de convivas para o jantar.”