O maior icebergue de sempre
Tem havido uma aceleração das mudanças do clima? E é isso que nos diz um icebergue que se está a formar do tamanho do Algarve?
A Península Antárctica é dos locais que tem estado a aquecer mais depressa no planeta: desde 1950, a temperatura média anual do ar subiu cerca de três graus Celsius. Será que, nos últimos tempos, temos estado a assistir a uma aceleração das alterações climáticas na Antárctida? É que ainda há semanas, por exemplo, chegou a notícia de que está a avançar velozmente uma fissura num grande bloco de gelo, na plataforma Larsen C.
Quanto ao aquecimento, Gonçalo Vieira, do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) da Universidade de Lisboa e o coordenador do Programa Polar Português, responde que depende dos sítios. E acrescenta que na área de trabalho dos cientistas portugueses – a parte ocidental da Península Antárctica –, a tendência dos últimos anos tem sido, surpreendentemente, de arrefecimento. Os dados do permafrost também mostram isso, em particular nas ilhas Shetland do Sul.
Ou seja, no solo nas regiões polares, nos primeiros metros, há uma camada que se funde no Verão e volta a ficar congelada no Inverno (a chamada “camada activa”) e abaixo da qual está o permafrost. Genericamente, tem-se registado um aquecimento do permafrost, sobretudo no Verão. Mas trabalhos científicos publicados em 2016 têm mostrado que, desde 1999, a tendência tem sido para arrefecer, registada tanto na atmosfera como no solo.
“Os nossos resultados indicam que o arrefecimento iniciado em 1998/1999 tem sido mais significativo no Norte e no Nordeste da Península Antárctica e nas ilhas Shetland do Sul, moderado nas ilhas Órcadas do Sul e ausente no Sudoeste da Península Antárctica”, lê-se num artigo de Marc Oliva (do IGOT), e colegas, na revista Science of the Total Environment, baseado em dados de estações meteorológicas. “Investigações futuras revelarão se a tendência recente de arrefecimento observada em partes significativas da Península Antárctica faz parte da variabilidade climática natural na região ou se mostra um ponto de viragem na tendência de aquecimento a longo prazo observada na segunda metade do século XX.”
Por exemplo, no arquipélago de Palmer, um pouco mais a sul das Shetland do Sul, “o aquecimento têm-se mantido”, refere Gonçalo Vieira, um dos autores de um outro artigo, na revista Catena, sobre o permafrost na ilha Decepção (uma das ilha do arquipélago das Shetland do Sul) e que também mostra que aí há um arrefecimento. Isso é visível na camada activa do solo.
“Começa a ficar claro que há um sinal de arrefecimento nos últimos 15 anos, mas a dinâmica da área é difícil de explicar”, nota Gonçalo Vieira. Será então que a variabilidade natural do clima (entre mais quente e mais frio) está a sobrepor-se ao sinal de aquecimento global do planeta de origem humana?
Já do lado oriental da Península Antárctica, o problema é que não há arrefecimento. “Noutras áreas da Antárctida, há uma aceleração do fluxo glaciário para o oceano e conhece-se mal o efeito que o mar mais quente tem na aceleração dos glaciares. Isso é bastante preocupante.” É precisamente deste lado da península que está a partir-se um gigantesco bloco de gelo na plataforma Larsen C – e a formar-se assim o maior icebergue de que há registo, segundo o British Antarctic Survey, com mais 5000 quilómetros quadrados, o tamanho do Algarve.
Nesta plataforma de gelo flutuante no oceano, vinha a desenvolver-se lentamente, nos últimos anos, uma fissura. Em Dezembro, a fissura expandiu-se abruptamente e tem continuado a crescer, faltando só cerca de 20 quilómetros para o bloco se partir. Esta sexta-feira, a BBC noticiou que as imagens de satélite mostram que a fissura tem agora 175 quilómetros de comprimento. “Não é claro se a quebra do bloco de gelo tem a ver com a dinâmica da plataforma de gelo ou com o aquecimento global”, explica Gonçalo Vieira.
Ao dizer isto, o investigador esclarece o que são estas grandes superfícies de gelo, muito planas, na zona final dos glaciares: “Os glaciares que estão em terra vão fluindo e entram mar adentro e começam a flutuar. Têm 200, 300 ou 400 metros [de espessura] e não estão ancoradas a nada. Naturalmente, vai chegar uma altura em que se vão partir.”
A questão é se os glaciares no interior da Antárctida estão a deslizar mais depressa em direcção ao mar, e se a plataforma Larsen C se vai partir por causas naturais ou porque o planeta está a ficar mais quente. E de que está mais quente não há dúvidas: 2016 foi mesmo o ano mais quente desde que há registos meteorológicos sistematizados, iniciados na década de 1880. “De forma extraordinária, este foi o terceiro ano consecutivo em que se bateu o recorde da temperatura global anual”, lê-se no relatório sobre o clima global em 2016, divulgado esta quarta-feira pela agência norte-americana dos oceanos e da atmosfera (NOAA). “Em 2016, a temperatura global média à superfície, em terra e no oceano, foi 0,9 graus Celsius acima da média de 13,9 graus do século XX, ultrapassando o anterior recorde de 2015 em 0,04 graus”, acrescenta-se. “É a quinta vez no século XXI que se atinge um novo recorde da temperatura anual (juntamente com 2005, 2010, 2014 e 2015).”
A comunidade científica, de forma esmagadora, relaciona o aquecimento global do planeta com o dióxido de carbono (CO2) que estamos a atirar para a atmosfera desde a revolução industrial. Em 2015, ultrapassou-se pela primeira vez, desde 1800, o início da revolução industrial, a marca das 400 partes por milhão (ppm) de C02 (o que significa que há 400 moléculas deste gás por cada milhão de moléculas na atmosfera). Até 1800, o CO2 na atmosfera estava nas 280 ppm.
Sobre as causas do que está a acontecer na plataforma Larsen C, ou noutras plataformas que já se quebraram, como a Larsen B em 2002, ainda é cedo para ter certezas, considera Gonçalo Vieira. “É difícil perceber o que é natural e o que é forçamento antrópico [de origem humana]. As plataformas de gelo colapsam naturalmente por questões dinâmicas, mas é verdade que parece estar a haver uma série de eventos, como é o caso de Larsen C”, diz. “É possível que sejam razões naturais, mas incrementadas pelo facto de haver temperaturas mais elevadas.”