O silêncio no diálogo entre Portugal e o Japão

As práticas anti-cristãs contribuíram para a mudança da imagem do Japão no mundo ocidental. Da imagem inicial de povo bélico mas civilizado, os nipónicos passaram a ser tidos como gente brutal e desumana.

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Kerry Brown

Em 1853 o comodoro Mathew Perry partia dos EUA com o desígnio de forçar os nipónicos a reatarem as relações com as potências ocidentais. Havia dois séculos que o governo Tokugawa decretara o controlo rigoroso e os termos dos contactos com o exterior, o que implicara o corte de relações com os seus primeiros interlocutores europeus - Portugal e Espanha -, e restringira a presença dos holandeses, os únicos ocidentais entretanto autorizados a manter o contacto com o Japão, a uma ilha artificial de dimensões ínfimas. Deste modo tão condicionado foi-se sustentando o relacionamento entre o Japão e o Ocidente, num diálogo onde o Cristianismo se mantinha proscrito e sustentava reciprocamente imagens negativas.

A iniciativa de Perry resultava de interesses económicos e justificava-se, numa lógica própria do século XIX, no dever moral de civilizar o nipónico, então estereotipado como um povo bárbaro e selvagem. Parte dessa imagem fora inferida da leitura de textos redigidos no século XVII no contexto de perseguição aos cristãos. Perry levava consigo uma obra considerada uma novidade, publicada em 1852, onde o seu autor, Talbot Watts, assumia a missão de disponibilizar ao público informações pouco acessíveis mas fidedignas sobre o Japão e os japoneses. De entre os vários temas focados e as práticas culturais descritas, Watts destacava o grau de barbaridade dos nipónicos na punição dos crimes, fazendo uso de descrições redigidas no século XVII a propósito da execução dos cristãos. Por sua vez, do outro lado, no Japão a que Perry ia ao encontro, a ideia de que a influência estrangeira era maléfica mantinha-se fortemente enraizada; os mercadores eram encarados como uma ameaça e os cristãos retratados na literatura popular como tipos execráveis.

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A suspensão era um método de execução utilizado no Japão desde o séc. XII. Com o regime Tokugawa foi aplicada a 14 tipos de crimes, entre os quais a conspiração, de que os cristãos eram acusados. Na Europa, surge descrito como crucificação

O Cristianismo fora sem dúvida um factor determinante, se bem que não exclusivo, para a decisão por parte do Japão em 1640 do controlo pelo poder central das relações externas, e a sua proscrição foi assumida pelo regime Tokugawa, quem governava então de facto, como uma decisão política a ser implementada.  

Silêncio trata o período final da presença dos missionários no Japão no século XVII, tendo como ponto de partida a apostasia do jesuíta português Cristovão Ferreira, no ano de 1633. Ao tempo Ferreira era um missionário experiente na missão nipónica e uma figura de destaque da Companhia de Jesus no Japão. Vivia no Japão desde os tempos do primeiro édito de expulsão dos missionários pelo xogunato (1614), chegara a Superior da missão, e era autor de textos de exortação ao martírio que circulavam entre os cristãos japoneses e de relatos que chegavam à Europa com a descrição de perseguições aos cristãos. Por isso, a sua apostasia estava em total discordância com as suas ideias, e contrastava com a perseverança de todos os seus colegas de martírio, alguns deles apenas noviços. A incredulidade perante a notícia da apostasia de Ferreira quando conhecida na Europa explica que num primeiro momento fosse dado como morto mártir na listagem anual redigida pelos jesuítas sobre as mortes ocorridas no Japão. Foi essa mesma estupefacção que num segundo momento levou vários missionários a rumarem ao Japão, onde estavam proibidos de entrar pelo seu poder central, para confirmar a veracidade da notícia.

Mas Silêncio perspectiva também o período final daquele que foi o primeiro encontro entre Portugal e o Japão, iniciado em 1543 quando uma embarcação de mercadores portugueses aportou por acaso em Tanegashima. A partir de então, mercadores e missionários, os “bárbaros do sul” na designação japonesa para denominar essa gente que vinda do sudeste lhes pareceu no primeiro momento incivilizada mas inofensiva, rapidamente se tornaram num veículo do exótico, do intercâmbio cultural, científico e religioso. O episódio da espingarda e o impacto causado pelos disparos de arcabuz pelo mercador Diogo Zeimoto, sendo um dos mais conhecidos, é apenas o primeiro exemplo da interacção civilizacional, contínua durante um século. Os jesuítas, durante várias décadas os únicos ocidentais a residir de modo permanente no Japão, foram sem dúvida figuras chave neste diálogo civilizacional e no conhecimento mútuo.

Sucesso da evangelização

À data do desembarque dos portugueses, o Japão vivia assolado por uma guerra civil que se estendia há quase um século. Desde o ano de 1467 que a corte imperial e o xogunato, isto é, o governo militar chefiado pelo xogum, tinham perdido a sua autoridade. O imperador não exercia um poder político efectivo, gozando apenas de um prestígio simbólico, e o governo do xogum e dos seus oficiais tornara-se incapaz de travar a ambição política e militar de guerreiros menores mas na realidade grandes militares, os mesmos que surgem tão bem caracterizados nos filmes de Akira Kurosawa. Neste contexto de desagregação do poder central, os missionários encontraram facilidade de circulação.

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A fragmentação política permitia que a hostilidade de algum guerreiro fosse facilmente compensada pelo bom acolhimento por parte de um outro seu vizinho. Esta foi uma das razões para o sucesso da evangelização missionária. Por sua vez, o padrão religioso nipónico assentava no sincretismo, visível na combinação de elementos de várias tradições. A recepção do Budismo, do Taoísmo e do Confucionismo não colidira com Xintoísmo, e nunca os nipónicos consideraram necessário rejeitar a sua religião nativa, nem mesmo a essência das suas divindades, os kami, para se tornarem devotos do Budismo. A introdução de mais uma religião não era por isso estranha aos nipónicos. Mais ainda, os jesuítas rapidamente se acomodaram ao Japão, fosse respeitando práticas locais, como não comer carne, fosse adaptando-se às tradições como foi o caso da construção das igrejas fazendo uso de tatami onde os fiéis ouviam a eucaristia sentados. A mensagem cristã proliferou, o elevado número de conversões fez da missão do Japão a mais bem sucedida de entre todas as missões católicas do século XVI.

Este sucesso viria porém a ser coartado pela reunificação militar do Japão, que implicou um processo de regresso à centralização política e a imposição de um regime de cariz autoritário. Nesse novo contexto, o Cristianismo passou a ser progressivamente considerado uma fé perniciosa. Primeiro, porque sendo uma religião monoteísta colidia com a tradição nipónica para o sincretismo religioso. Depois, porque invocava o amor a Deus sobre todas as coisas, um mandamento que poderia ser desafiador da nova ordem política e social que se vinha impondo. Para agravar a intransigência do xogunato Tokugawa contribuía o facto de os missionários insistirem em permanecer ocultos em terras nipónicas, apesar dos sucessivos éditos de expulsão, e o facto de muitos japoneses cristãos preferiam sofrer o suplício a renunciar à fé, mesmo que apenas exteriormente pelo acatamento da imposição de prática de um gesto, como fosse pisar a imagem da Virgem ou de Cristo crucificado.

A severidade extrema com que os cristãos foram sendo punidos, primeiro de forma pontual, depois, com o avançar do tempo, de forma sistemática, não constituiu por si uma novidade no contexto penal nipónico. No Japão da época, a execução constituía a punição por excelência e os vários métodos aplicados aos cristãos eram desde há muito praticados. Porém, enquanto para as autoridades nipónicas a execução pública, prolongada e espectacular, constituía um mecanismo de punição daqueles que desafiavam as regras, e sobretudo um instrumento de intimidação e dissuasão para os que assistiam, para os cristãos esse mesmo suplício era martírio, isto é, a morte pela fé à imagem da redenção de Cristo crucificado. Nas descrições que chegaram até à actualidade, grande parte redigida pelos jesuítas, que por intermédio dos mercadores as faziam chegar à Europa, e nas quais Shusaku Endo (autor do livro Silêncio de que Scorsese fez o filme com o mesmo título) se inspira de forma evidente, os cristãos nipónicos são descritos como gente que tolerava o suplício com coragem, determinação, numa capacidade de entrega surpreendente. À semelhança de Cristo, caminhavam para o suplício como verdadeiros apóstolos, testemunhando a sua fé pelo sangue, num comportamento tão exemplar que levou à sua identificação com os cristãos da Igreja Primitiva. Os mártires do Japão tornaram-se a imagem viva do sucesso de uma Igreja Católica que, na Europa, defrontava a cisão religiosa desencadeada pelo reformismo protestante. Isto também explica que estes mártires tenham sido logo e amplamente celebrados, no imediato através da imprensa da época, e de modo perene através da beatificação de alguns dos executados.

Kakure kirishitan

As atitudes dos conversos nipónicos perante a perseguição e a morte foram facilitadas pela similitude entre algumas práticas culturais e tradições religiosas nipónicas e a doutrina de se viver à imagem de Cristo pregada pelos missionários. Por exemplo, no Japão do século XVI as relações de vassalagem entre os guerreiros assentavam num forte sentido de lealdade e solidariedade, e já então, de acordo com a cultura da honra, era suposto o guerreiro seguir o respectivo senhor até à morte. Além disso, à data do início da evangelização missionária no Japão, a ideia de paraíso encontrava-se interiorizada através do Budismo. A escola budista Verdadeira Terra Pura defendia que pela prática do nenbutsu, isto é, através da invocação sincera do buda Amida, o indivíduo garantia a salvação eterna pois a iluminação não dependia do seu esforço individual mas dos poderes salvíficos de Amida. Também no Cristianismo a salvação era obtida através do poder salvífico de um “outro”, Deus, misericordioso, compassivo e benevolente. Não se pretende com isto desvirtuar ou menorizar a vivência cristã e o fenómeno da resistência dos cristãos nipónicos. A extensão da perseguição, da resistência dos conversos e depois o fenómeno dos cristãos ocultos não seria compreensível sem a interiorização das noções cristãs de fé, de pecado, de redenção, e de salvação eterna, mesmo que numa versão «niponizada».

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A eficácia das práticas anti-cristãs teve efeitos múltiplos. Um deles foi a apostasia de cristãos, o tema central do Silêncio, procurando o regime de Tokugawa demonstrar a corruptibilidade de uma religião que era considerada perniciosa. Esta estratégia tornou-se, aliás, primordial no combate ao Cristianismo, muito mais eficaz do que o (simples) suplício e a execução. Outra consequência foi a emergência dos kakure kirishitan, isto é, de cristãos que passaram a viver a sua fé de forma oculta com vista a garantirem a sobrevivência, assim mantendo práticas e rituais até à data do fim da proscrição do Cristianismo, em 1873, e ainda subsistindo como uma comunidade religiosa no Japão actual.

Por último, as práticas anti-cristãs levaram a uma alteração substancial da imagem do Japão no mundo ocidental. Da representação inicial de povo bélico mas civilizado, os nipónicos passaram a ser vistos, do século XVII em diante, como gente brutal e desumana, propensa a execuções públicas e espectaculares.

O livro de Shusaku Endo suscitou debate imediatamente após a sua publicação, em 1966, dada a forma como o autor, católico e baptizado, tratara o dilema espiritual e psicológico de quem é obrigado a renegar a fé. A versão cinematográfica certamente lançará de novo a discussão sobre a fé, as suas apropriações, e a apostasia. Mas se o Cristianismo constituiu um legado inequívoco da presença portuguesa no Japão, a perseguição aos cristãos não foi a tónica central do relacionamento entre Portugal e o Japão, que se caracterizou antes de mais e sobretudo por um intercâmbio intenso e mutuamente profícuo durante quase um século, e que por isso mesmo é ainda hoje de sobremaneira valorizado no Japão actual. 

Investigadora do CHAM -Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova Lisboa

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