Ao ritmo da dúvida como nas marés

Filme sobre a dúvida do homem de fé, abdica de uma das forças anímicas do cinema de Scorsese, a música. Como se só assim a verdade se fizesse ouvir. Século XVII, Japão, as perseguições aos jesuítas portugueses.

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No princípio há o barulho intenso dos grilos, quase ensurdecedor. Depois uma zoada de insectos, som de calor húmido, vapor de água, um fervilhar líquido. Há o vento, as ondas, os passos no chão de terra e outros a marcar contraste, noutra cena, no asfalto e no chão de pedra. Há as aves, o restolhar das folhas, sons indecifráveis de vozes, a estranheza das falas sem tradução. Não há música a não ser a da ladainha das orações, ou de um instrumento que se escuta ao longe numa rua e entra por uma janela aberta. Há gritos de dor, gemidos, o abafado do sufoco e do medo. Não há outra música em Silêncio, o último filme de Martin Scorsese. Só o homem na natureza com a sua dúvida de fé e o dilema acerca dos seus limites enquanto se confronta com a diferença civilizacional.

Onde está o ponto para lá do qual não se pode passar? É a pergunta que, com Scorsese, também faz Liam Brockey, um dos historiadores que trabalhou com ele na adaptação ao cinema do romance de 1966 de escritor japonês Shusaku Endo (1923-1996). “Gosto dessa opção, do homem apenas com os sons que lhe chegam da natureza. No caso dos jesuítas portugueses, de uma natureza que lhes era estranha e muito dura”, diz o historiador numa conversa com o Ípsilon a partir da sua casa em East Lansing, 145 quilómetros a oeste de Detroit, e sede da universidade estadual do Michigan onde é professor.

Há três semanas que o filme se estreou em Nova Iorque e só agora chega àquele estado do norte dos EUA. “Como é que um cineasta cria uma visão histórica? Essa é a minha função como historiador, imaginar como se vivia partindo de descrições, imagens, factos, cruzando fontes. Quiseram a minha ajuda para ter acesso aos objectos, incluindo obras de arte, mais apropriados para perceber este mundo. O ultramar português, aqui na América, é quase desconhecido.” Como era um crucifixo, como se vestiam, o que comiam, como interagiam. Liam Brockey fala detendo-se nos detalhes que reteve quando viu Silêncio ao lado de Scorsese na casa do realizador em Nova Iorque. “Quando vi o filme estava muito atento a todos os pormenores. Os sons, as imagens, o que aparece no cantinho de uma cena, as janelas dos barcos, os prédios em Macau, mas também aos discursos dos actores”, conta num português quase sem sotaque este especialista da expansão portuguesa e das missões católicas, com enfoque na Ásia na época moderna.

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A acção arranca em 1633, no Japão rural, com a apostasia do padre jesuíta Cristóvão Ferreira, interpretado por Liam Neeson FOTO: Kerry Brown
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Sete anos depois, outros dois padres saem de Macau: o padre Garrpe (Adam Driver) e o padre Rodrigues

O filme e o livro

Há três anos, a equipa de Scorsese contactou-o para fazer consultoria histórica. Ou seja, ajudar a construir o ambiente e a entender a mentalidade dos jesuítas portugueses no Japão do século XVII. Era esse cenário do filme que se seguia a O Lobo de Wall Street (2013), um projecto que o acompanhava desde que lera o romance de Endo numa visita ao Japão há 26 anos. O livro focava alguns dos aspectos mais presentes na obra de Scorsese, sobretudo a relação entre sagrado e profano, o homem religioso e a renúncia à fé. É essa flutuação, entre dúvida e certeza, que Liam Brockey mais reteve da única vez em que viu o filme. “O filme é o ritmo”, e acrescenta, “o ritmo da oscilação entre a fé e dúvida que se assemelha ao ritmo das marés.”

A acção arranca em 1633, no Japão rural, com a apostasia do padre jesuíta Cristóvão Ferreira, interpretado por Liam Neeson. Sete anos depois, outros dois padres saem de Macau apostados em descobrir a causa do desaparecimento daquele que consideram seu mentor espiritual. Leram a sua descrição do sofrimento a que os cristãos eram sujeitos e mais tarde chegaram notícias da que era um apóstata. Querem ver. Sabem ser uma missão de risco. Os cristãos naquela altura são alvo de perseguição, tortura e morte. Além de Ferreira, eles seriam os últimos padres católicos em território japonês. Chamam-se Rodrigues (Andrew Garfield) e Garrpe (Adam Driver) e vão submeter-se à extrema prova da sua fé que é também a prova da sua identidade. “Este projecto é como um banco com três pés: um é o livro, outro o génio do Scorsese e o terceiro os acontecimentos históricos.” Foi com esta espécie de pilares que leu o guião, se “acertaram frases”, deixando espaço para a liberdade criativa de Scorsese. “Trabalho com fontes escritas dos jesuítas, tenho uma boa ideia do registo que usavam para falar entre si. Era um aspecto que tinha de ser aperfeiçoado. Scorsese, como o seu chefe de pesquisa, queriam que chegássemos, tanto quanto possível, a um registo parecido. Em certos momentos preferiram que fosse não muito rigoroso mas captasse o espírito do livro.”

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Há três anos, a equipa de Scorsese contactou Liam Brockey para consultoria histórica: para construir o ambiente e a entender a mentalidade dos jesuítas portugueses no Japão do século XVII FOTO: Shelby Kroske

Estamos perante um filme feito no século XXI, baseado num livro escrito em 1966 sobre acontecimentos do século XVII num mundo que é um cruzamento de culturas — chinesa, japonesa, europeia —, facto que, sublinha Liam Brockey, põe em “conflito” vários momentos e visões diferentes da História. E a linguagem é apenas parte do conflito. “O livro foi escrito num tempo em que se puseram muito as questões da identidade católica e da presença do catolicismo fora da Europa, a altura de descolonização, de pós-guerra, de grande questionamento acerca se o cristianismo podia ser parte de culturas não ocidentais. E Endo, convertido ao catolicismo, estava a confrontar-se com elas na sua vida pessoal. O filme segue muito essa linha de pensamento. Hoje, como historiador, não penso nessas perguntas da mesma maneira; estou muito mais atento aos debates do século XVII em que outras certezas, como a presença dos impérios ou a bondade da missão não eram postos em causa. Eram absolutos naquela altura. Olho-os o mais possível à luz do seu tempo e não à luz do escritor nos anos 60, a serem filmados, a ter vida no cinema, no século XXI.”

Liam diz isto e insiste em separar a sua visão de historiador da do criativo a quem reconhece o génio e a curiosidade. “Ele quer mesmo saber para poder fazer ficção e esta é uma obra de ficção onde há uma quota parte de história verdadeira e bastante verosimilhança”, continua, sublinhando a necessidade de contextualizar aquele período para não se pensar que há uma tentativa de branqueamento do papel do jesuíta no Japão do século XVII. “O que estamos a ver no filme não é um conflito missionário. Temos a visão sinistra do missionário que chega e que impõe, mas neste filme estamos a debater outras coisas. É verdade que em épocas anteriores à retratada no filme houve conversões pela força, mas o filme relata acontecimentos de 1640 e depois. As perseguições aos cristãos já tinham quase vinte anos e foram brutais, já a igreja se tinha expandido na ordem dos 300 mil cristãos. Não estão ali a falar de missionários que chegam para impor, mas que tentam suster as ‘cristandades’ que já lá estão, pessoas que querem ser cristãs.” No caso, camponeses. “Não há relação de força colonial. As forças que cristianizaram o Japão foram os próprios senhores da guerra que aceitaram o cristianismo, foram baptizados, e impuseram-no depois aos súbditos. Isso ocorreu duas gerações antes dos acontecimentos do filme.” Quando os últimos missionários chegam ao Japão é para tentar guardar uma religião que está a ser extinta. “Não é uma questão da imposição do cristianismo. É de manutenção perante forças sobretudo políticas que em nome da reunificação do Japão vêem o cristianismo como potência subversiva. Nesta perspectiva, há que destruir o Cristianismo para pôr fim aos contactos que os japoneses pudessem ter com o mundo exterior.”

Cristóvão Ferreira, como depois os padres Rodrigues e Garrpe chegam nesse momento em que a escolha é entre a fé e a vida. Deles ou dos que os rodeiam. É a tal oscilação vincada em que Silêncio se movimenta e de que se alimenta ao longo de quase três horas. Vincar o sofrimento para justificar a apostasia, testar o limite, ou, noutros termos, o ponto a partir do qual a comunicação já não é mais possível.

Os limites

É em silêncio que Rodrigues olha a crucificação de três camponeses numa praia, as cruzes junto ao mar enquanto a maré sobe para os sufocar e depois desce. Eles não renunciaram. E ele? O ritmo do mar ao ritmo da fé. “É um gesto mais cristão abdicar da própria fé ou persistir nela apesar das consequências para outras pessoas? É a grande questão do filme em termos teológicos”, refere o historiador, com Scorsese a levar as suas personagens ao tal ponto limite em que não se é nem herói, nem mártir, nem anti-herói. Ele não quer mostrar isso. Quer sublinhar a dúvida humana quando parece humanamente impossível haver espaço para mais dúvida. A tal fronteira arriscada que Endo pisa no livro ao retratar a apostasia como saída pública para a fé privada, mantida secreta, no silêncio do homem com Deus. E a palavra ‘Deus’ no filme é dita em português, como ‘padre’ ou ‘paraíso’. Poucas mais referências além dos nomes dos padres. “Vemos a figura do jesuíta a interagir com várias camadas da sociedade. O filme mostra a dificuldade de viver nesses meios diversos, de navegar entre as diferentes camadas da população; o homem moderno numa natureza que não é construída para o mundo moderno; tudo ali muito pré-moderno”, continua Liam Brockey, acrescentando que é “pouco útil” pensar nestas figuras como heróicas ou, o contrário, como anti-heróis”.

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Além de Ferreira, Rodrigues (Andrew Garfield) e Garrpe são os últimos padres católicos em território japonês e vão submeter-se à extrema prova da sua fé que é também a prova da sua identidade FOTO: Kerry Brown
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O japonês Kichijiro (Yôsuke Kubozuka) é o guia dos dois padres, homem que vive refém da sua miséria de cristão

O vaivém do dilema tem outro sublinhado, figura na personagem do japonês Kichijiro (Yôsuke Kubozuka), o guia dos dois padres, homem que vive refém da sua miséria de cristão que nega a fé para logo pedir que o redimam da culpa. Ele torna-se um fantasma, o servo que espia, o delactor, a imagem extremada da ambiguidade do devoto. “Ele representa a dúvida que está sempre com o padre. O padre representa uma certeza a tentar vencer a incerteza. Kichijiro está lá para cutucar, causar problemas. O trabalho entre estas duas figuras é como o fluxo das marés”, compara Brockey, o historiador que arrisca dizer que mais do que a pergunta “serei mesmo um cristão?” ou “até que ponto sou cristão?”, o filme interroga: “quem é o cristão?”. “São os japoneses que estão lá e querem ser cristãos, são os apostatas? O inquisidor na versão verídica da história era um cristão tal como o intérprete que lá retratado, e agora estão a perseguir. É o padre? Quem é o cristão?”

E a outra pergunta leva-nos ao início de tudo. Aos sons, à língua antes de ser entendida, aos códigos que é preciso apreender para que haja um sentido na grande babel. “Até que ponto é que podemos traduzir o que somos, na linguagem litúrgica, teológica, filosófica. Até que ponto as coisas são aceites noutro registo cultural, que tradução são válidas e não são válidas. Qual é o ponto onde as traduções têm de parar.” Liam Brockey insiste neste ponto. O limite. Metafórico e literal. É outra vez a linguagem. “No filme original, há momentos com legendas quando se fala japonês, há japoneses a falar em inglês, há inglês com muitos sotaques... há toda uma Babel a remeter para a questão: quem percebe? Mesmo tendo todas as palavras...”

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