Turquia, o valor estratégico
Esta nação é sentida como uma ameaça por alguns. A Rússia teme a sua ascensão regional e detesta a forma como ela está a “invadir” espaços que em tempos foram da União Soviética, designadamente na Ásia Central.
Durante décadas do pós-Guerra a “construção europeia” foi-se aprofundando em sucessivos níveis de integração de grande parte da Europa Ocidental. Posteriormente, o colapso da União Soviética e a desagregação do bloco oriental de países que se lhe associavam agudizaram a perceção de que o alargamento da União Europeia (UE), enquanto espaço integrador, seria estrategicamente importante para ocupar esse espaço de influência em implosão.
Embora essa reorientação da estratégia europeia fosse intuitivamente apontada aos países da Europa Central e de Leste, a decisão sobre a eventual adesão da Turquia era uma matéria incontornável mas polémica. A distância geográfica é um fator irrelevante. Chipre, que já é membro da UE, encontra-se bem mais a Leste que Istambul. Mas a Turquia tinha manifestado a sua intenção de aderir à comunidade europeia muito antes do próprio desmembramento do bloco soviético.
O que a União Europeia tem feito ao longo dos anos é, basicamente, iludir ciclicamente a Turquia nesse processo, o que choca e ofende os turcos. E os afasta.
Vários países europeus tentaram sabotar qualquer possibilidade de integração da Turquia. Esta posição não é surpreendente em França, um país com 5 milhões de muçulmanos, com problemas de racismo em ambos os sentidos, com camadas de população claramente chauvinistas e xenófobas e com uma temível incubação de extremistas islâmicos. Mesmo antes da nova vaga terrorista germinada no seio da vaga de “refugiados”, tratava-se de uma matéria também sensível na Áustria e na Eslovénia.
Há uma década referi que “Se a Turquia for rejeitada, com a sua enorme dimensão conferirá prioridade a outras alianças e outras estratégias, na região e no mundo, em benefício de outros, não da UE”.
Os anos passaram e essas previsões confirmaram-se. Por cegueira estratégica da UE, a Turquia, que está a transformar-se numa influente potência regional, voltou-se, entretanto, para aquelas regiões e assumiu nelas influências e protagonismos que poderiam hoje ser da UE mas que, assim, basicamente operam contra muitos dos nossos interesses. De resto, a política externa europeia é um dos domínios de maior ineficácia do centralismo europeísta. A “diplomacia europeia” evidencia uma ineficiência incompreensível de que os cidadãos não se apercebem simplesmente porque ela é quase invisível por ser irrelevante. A espantosa inabilidade europeia transformou o dossier turco num outro erro grave.
Perante a desorientação da UE, o grande integrador da Turquia com o mundo ocidental é, afinal, a NATO, sendo os Estados Unidos o seu elemento fulcral. A Turquia é um membro estrategicamente fulcral da NATO, na qual possui as segundas maiores Forças Armadas e as maiores da Europa.
Apesar de o poder político turco ser atualmente controlado por um islâmico moderado com crescentes tiques autoritários, apenas 12% da população apoia a introdução de uma lei islâmica tradicional, a sharia, enquanto uma forte maioria a rejeita. De facto, o número de islâmicos conservadores na Turquia é percentualmente muito inferior ao número de franceses que apoiam o partido extremista de Le Pen.
A Turquia, apesar de deter a maior parte do seu território no continente asiático e uma parte menor na Europa, possui a única capital que, ela própria, se distribui nos dois continentes, de ambos os lados das pontes do Bósforo. Este país é, geográfica mas também simbólica e culturalmente, um ponto de união, diálogo e interação intercultural e estratégica entre o Ocidente e o vital Médio Oriente, para além de constituir aquilo que poderia ter sido um poderoso instrumento de alavancagem do prestígio e da empatia operativa da UE no vasto mundo islâmico.
Esta nação é sentida como uma ameaça por alguns. A Rússia teme a sua ascensão regional e detesta a forma como ela está a “invadir” espaços que em tempos foram da União Soviética, designadamente na Ásia Central, região rica em petróleo onde as apostas estratégicas e económicas são discretas mas fortíssimas a uma escala global.
A Turquia é muçulmana mas essencialmente secular, sendo um exemplo crucial para a sociedade islâmica, que se interroga sobre a adaptabilidade da democracia e do secularismo aos seus países. Aqueles que, na Europa, se afligem com a natureza muçulmana moderada dos turcos, dão ao mundo islâmico um sinal que este vê como uma prova da intolerância dos europeus. Mas estes aceitam a futura adesão de dois outros países islâmicos, a Bósnia e a Albânia. A diferença reside no facto de estes serem países fracos. Pelo contrário, a Turquia possui uma enorme extensão e, com os seus mais de 80 milhões de habitantes, seria o maior país da UE em extensão e, a par da Alemanha, deteria a maior população nacional. Afinal, esta nação foi, durante séculos e até o início do séc. XX, o centro do enorme e poderosíssimo Império Otomano e no séc. XIX era uma grande potência europeia. A Turquia assusta muitos na Europa, em especial aqueles que pretendem construir conspirativamente uma União Europeia que eles próprios venham a controlar, em que lentamente vão eliminando os poderes e as identidades nacionais.
A Turquia é um exemplo de convergência inter-civilizacional. Uma UE cega e assustada pela diferença não compreende que a Turquia, por isso mesmo, seria, para a própria Europa, um valor acrescentado na política mundial e na economia europeia e um aumento profundo da influência europeia no Médio Oriente e no mundo islâmico. E o regime turco, em lugar de receoso numa região sem aliados fiáveis, seria bem mais aberto se integrado na UE.
Muitos têm invocado que a Turquia não está pronta para aderir à UE. Mas a maior questão é outra. A verdadeira dúvida é a de determinar se a União Europeia está pronta para acolher a Turquia.