“As custas judiciais de hoje são impensáveis num Estado de direito”
Guilherme Figueiredo toma esta quarta-feira posse como bastonário da Ordem dos Advogados. Diz que a Justiça se tornou num "bem económico" e que a anterior reforma judiciária "falhou". E defende que o pacto para a Justiça não pode servir "interesses corporativos".
Advogado há mais de 30 anos, Guilherme Figueiredo nasceu há 60 anos no Porto, onde tem escritório. Foi aí que falou ao PÚBLICO num ambiente tranquilo de domingo. Toma posse esta quarta-feira como bastonário. Nesta entrevista faz o retrato da Justiça e explica o que pensa da reactivação de 20 tribunais.
Qual é o maior problema da Justiça?
O Presidente da República falou da lentidão. É de facto um dos grandes problemas. E gera um problema de confiança. Se perguntar ao cidadão se confia na Justiça, provavelmente a grande maioria das respostas é que não confia. E isto traz um problema acrescido que é o afastamento do cidadão da Justiça. A lentidão está associada a outros problemas. Existe uma enormíssima falta de funcionários judiciais, existe falta de magistrados do Ministério Público e de magistrados judiciais. Existe falta em muitos tribunais de condições físicas, que é o caso das salas de audiência. Só se podem fazer julgamentos quando existe uma sala livre. Mas, em vez de se melhorar as condições objectivas que exigem um maior orçamento para a Justiça, o que se faz é pensar que a alteração legislativa resolve o problema. Não resolve. As alterações legislativas constantes são elas próprias uma causa da lentidão. São um problema e não uma solução. Mas quem entra não tem condições económicas e acha que altera o processo civil ou o processo penal e resolve as questões.
Então não há um problema, há vários…
É um problema transversal: a Justiça não é considerada um bem essencial, mas um bem económico. As custas judiciais que existem hoje são absolutamente impensáveis num Estado de direito democrático. Hoje temos custas mesmo em assuntos fundamentais como os relacionados com os menores e com a família, que conduzem genericamente à fuga do tratamento do assunto nos tribunais. Imagine um problema simples: os pais, que estão separados ou divorciados, querem alterar o fim-de-semana e as férias de um filho. Chegam ao fim e cada um deles paga 900 euros de custas. Para a classe média 900 euros por cada progenitor – está ver o que significa.
E isso sem contar com os honorários dos advogados…
Estamos a pensar na Justiça como um serviço que se dá ao cidadão e não numa justiça que serve o cidadão. E isso transforma a Justiça não num bem essencial para o Estado de direito democrático, mas num bem económico. Este elemento não pode ser traduzido numa solução para que haja menos lentidão. Se ninguém recorrer à Justiça porque é cara, é evidente que há menos processos. Aí tínhamos uma solução fictícia: as condições objectivas já seriam suficientes, porque as pessoas não iam aos tribunais. E, não iam aos tribunais, não porque não precisassem, mas porque não tinham capacidade financeira.
Um pacto entre os profissionais da Justiça pode ser importante?
O pacto é importante, mas não cai do céu, nem nasce da terra. Alguma coisa tem de ser feita para chegar ao pacto. E esse tem sido o problema. Ninguém fez nada.
Mas há um grupo de trabalho recente que inclui diferentes profissionais do sector.
Ainda não tenho conhecimento desse grupo, mas será com certeza constituído com um objectivo muito concreto. Proponho um fórum da Justiça em que participem uma quantidade grande de entidades, que permita a confrontação de ideias que poderão ou não dar lugar a grupos de trabalho. Mas não podemos criar mecanismos que sirvam só os interesses corporativos. É preciso integrar os representantes de todos os partidos da Assembleia da República e trazer a sociedade civil. Muitas vezes têm experiências e reflexões que os próprios profissionais não têm.
Como avalia o desempenho da ministra da Justiça?
Tenho uma excelente impressão relativamente à ministra. Das qualidades intelectuais e até do desempenho. O que tem acontecido são sinais. São pequenas alterações, mas não temos ainda nada de grande. Por outro lado, se for coisas grandes sem grande efeito, é preferível que não faça.
Como olha para a reactivação de 20 tribunais que abrem sem magistrados residentes?
Numa boa parte dos casos os julgamento estavam a ser feitos por juízes que aí se deslocavam. Alguns são meras secretarias. E têm um problema de nascença que foi o levantado pelo Sindicato dos Funcionários Judiciais: que é trazer para este âmbito funcionários autárquicos. Não pode ser. De facto, o dever de reserva e sigilo é uma das componentes essenciais do serviço na Justiça. A ideia de uma secretaria para informar e receber documentos dos cidadãos faz sentido. A ideia de o magistrado ir lá fazer julgamentos parece-me bem. É um bom sinal: quer dizer o ministério e o Governo preocupam-se com a proximidade da Justiça do cidadão.
Pouco mais de dois anos após o lançamento da reforma do mapa judiciário, que balanço faz da aposta na especialização e na concentração de serviços nas capitais de distrito?
Falhou, quando se começou a pensar na Justiça do ponto de vista meramente económico. O problema da proximidade foi pensado a partir dos processos pendentes. Não pode ser. Se tenho uma zona de Trás-os-Montes e o Governo quer desenvolvê-la, não vai tirar o hospital, não vai tirar os correios, não vai tirar a Justiça – mesmo que tenha 150 processos. Pode arranjar mecanismos híbridos, por exemplo, ter lá um tribunal ao lado com que partilha recursos. Pode ter apenas um juiz. Não se pode é dizer "a pendência é o elemento determinante". Não é. Determinante é a política que se pensa para aquele território.
Mas há um problema de escassez de recursos e de facto as pessoas estão concentradas nos centros urbanos.
Este problema tem de ser pensado no seu conjunto. Não pode ser pensado na perspectiva de um ministério. O que temos ouvido por força de outros ministérios e de outros primeiros-ministros é que querem desenvolver o interior. Se querem desenvolver aquele território, não podem fazê-lo quando começam a tirar serviços por força da escassez económica. É um problema de prioridades. Precisamos de políticas de desenvolvimento. Muitas vezes são pequenas coisas. Por isso digo: se, por um lado, o que a ministra fez não tem grande densidade, do ponto de vista simbólico pode ser importante. Significa que estamos a olhar para a Justiça não apenas do ponto de vista das pendências, mas do ponto de vista do cidadão.
Então qual é o balanço da reforma?
É preciso que cada reforma seja monitorizada. E tenhamos elementos. Só com eles percebemos se devemos actuar. Ainda é cedo. Há entorses que já vamos conhecendo que podem exigir uma microcirurgia. O ministério tem de olhar a Justiça no seu conjunto, com os vários actores. Alargar o âmbito de apoio às reformas. E isso só se consegue a trabalhar em conjunto. O mais importante é que nos foquemos nos problemas objectivos.
Quando alguém dizia que os magistrados são todos maus e que fazem muitas asneiras, temos logo várias consequências: estamos a dar um sinal para fora que descredibiliza e faz o cidadão perder a confiança no sistema. Em segundo lugar, estamos sistematicamente a imputar aos outros a responsabilidade sem pensar no problema concreto. E em terceiro e mais grave, não temos a coragem suficiente para apontar em concreto o que a pessoa fez mal. Portanto, não se resolve a questão concreta. A advocacia deve dizer "o juiz do tribunal tal tem tido um comportamento que não é o correcto". Devemos participar ao Conselho Superior da Magistratura, com a ordem atenta. Da mesma maneira, o contrário.
Pretende fazer alguma coisa para alterar o apoio judiciário, que permite aos cidadãos sem recursos ter acesso a um advogado?
Melhorá-lo. Não mudarei o modelo. Mas é preciso discuti-lo. Melhorá-lo em várias frentes. Os advogados que fazem apoio judiciário têm exactamente as mesmas responsabilidades que os outros. Ora, os advogados têm despesas para a manutenção da sua profissão. Tenho um custo enorme para manter este escritório, tenho funcionários... Os meus honorários existem tendo em conta tudo isto. Os honorários dos advogados que fazem apoio judiciário são muito modestos, porque não se pensa no suporte que é preciso ter para exercer a profissão. E são imensamente modestos quando compararmos com os do agente de execução – que muitas vezes não faz nem metade do que faz um advogado e recebe o dobro. Pagar, mas pagar razoavelmente.
Mas se calhar o mais importante para advogados que vivem com muitas dificuldades é receber prontamente. Sabemos que muitos que exercem o apoio judiciários o fazem porque aquelas quantias ajudam à própria sobrevivência. Não podem fazer o serviço hoje e receber daqui a seis meses. Fazem o serviço hoje e têm de receber no mês seguinte.