Soares e o futuro
A sua grandeza está em ter acertado em dois grandes essenciais: democracia pluralista e construção europeia.
Mário Soares perdeu eleições, enganou-se redondamente algumas vezes, prescindia de ser exemplar e não tinha vocação (nem paciência) para ser santo. A sua grandeza está em ter acertado no essencial, ou melhor, em dois grandes essenciais: democracia pluralista e construção europeia.
Se esses dois grandes essenciais hoje nos parecem banais, a verdade é que em tempos o não foram de todo. Cada um deles fez parte de uma grande batalha de ideias que precisou de ser ganha e que vale a pena revisitar em busca de conteúdo prático. As duas batalhas que Soares ganhou não travou sozinho e não acabaram ainda. Precisámos dele no passado, mas ainda precisamos dele para o futuro.
Antes do 25 de Abril, Portugal era um império colonial. Para uma parte da elite portuguesa, a discussão crucial era sobre como manter esse império. Só que um império não pode ser uma democracia — nem nas colónias nem na metrópole — e Portugal teria de decidir onde estava a sua prioridade. Podemos ver essa batalha de ideias como um confronto entre “Portugal e o Futuro” de Spínola e “Portugal amordaçado”, de Soares. Spínola propunha uma espécie de federalismo tardio entre Portugal e as colónias. Soares dava prioridade à libertação das sociedades de um lado e do outro. O projeto de Spínola não era só incompatível com essa libertação; era incompatível com a realidade do tempo. A anomalia de uma Europa que repartia entre si o resto do mundo já estava a ser revertida. Atrasar esse processo tinha resultado numa cruel guerra colonial e nada de bom viria de prolongá-lo mais ainda. Soares via o desfecho dessa tendência da história com naturalidade e até com alívio, e essa sua lucidez ajudou-o a ganhar a batalha: desamordaçar Portugal implicava descolonizar.
A segunda batalha de ideias decorre naturalmente da primeira. Infelizmente criou-se entre nós a ideia de que o projeto europeu foi para Portugal um daqueles esquemas de “enriqueça depressa agora” que às vezes nos chegam pelo correio. Esse lugar-comum desvalorizou e descaracterizou o nosso debate europeu até aos dias de hoje: quando deixou de haver (tanto) dinheiro e passou a haver austeridade, foi como se a Europa já não fizesse sentido. Algumas interpretações mais sofisticadas ainda admitem que a pertença ao projeto europeu tenha permitido a Portugal consolidar-se enquanto democracia e estado de direito como nunca na sua história o conseguira. Democracia e Europa são, de facto, ainda mais contemporâneas do que às vezes parece: embora a adesão oficial à CEE se dê só em 1986, os pedidos de adesão ao projeto europeu são de 1975 e 76. Mas mesmo esta perspectiva peca por defeito. Tal como a Europa não é um mero projeto de “enriqueça depressa agora”, também não é uma garantia de “mantenha-se uma democracia e um estado de direito sustentável” até ao fim dos tempos. Ambas essas missões têm de vir de dentro para fora. Afinal o que é o projeto europeu? O projeto europeu foi a forma que os países europeus encontraram para manter relevância e soberania numa fase pós-imperial da história. Ao contrário da opinião convencional, a UE não apareceu para dissolver os países europeus, mas para os salvar — numa fase da história em que deixaram de ter o poder desproporcionado e injusto dos impérios.
Como disse antes, Soares não ganhou nenhuma destas batalhas sozinho (e não falo só daqueles que o acompanharam, de Melo Antunes a Medeiros Ferreira). O que Soares viu, com maior clareza do que outros, foi que a maioria dos portugueses já concordava — ou viria a concordar — com estas ideias. Foi isso que lhe permitiu defendê-las até contra elites nacionais e internacionais que as davam por perdidas. É por isso que ele se tornou um político com relevância europeia e mundial. E é isso que teremos de aprender a fazer com o exemplo de um homem que não tinha interesse em ser exemplar. Usando duas palavras mal-jeitosas: o que nos deve interessar agora não é memorializar Soares, mas operacionalizá-lo.