A doutrina Trump-Putin
Trump é sensível a este novo statu quo e minimiza as ambições russas, porque não quer saber das várias partes do mundo em que lhe é indiferente serem os russos a mandar.
Está-se a definir, embora ainda de forma muito embrionária e imprecisa, uma doutrina Trump-Putin, sem precedente na geopolítica depois da Segunda Guerra Mundial. Na verdade, a afirmação anterior podia ter algumas nuances, porque houve momentos em que doutrinas semelhantes se esboçaram, em particular na França, com De Gaulle e com o consistente e contínuo antiamericanismo dos gaullistas pós-De Gaulle. Mas os tempos são diferentes e uma coisa é a França, outra os EUA.
Trump, mesmo que seja difícil encontrar uma linha coerente na sua actuação, tem nesta matéria mantido uma constância de posições que podem variar no alcance e na urgência, mas que marcam uma ruptura com toda a política externa americana desde a Guerra Fria e mesmo no pós-Guerra Fria. Estas posições são alicerçadas nas opiniões pessoais de Trump, e na migração para o campo de Estado e da política, nacional e internacional, da única experiência que ele tem, a dos negócios e das empresas. Podemos considerar que é pouco e perigoso, mas é o que é e não penso que vá mudar facilmente, até porque ele é um homem com uma alta noção de si próprio, um “convencido”, e como esses defeitos não foram óbices para ter a presidência, dificilmente mudará de estilo. Ele é um ”convencido”, convencido de que tem razão, e como, contra tudo e contra todos, obteve todos os sucessos que pretendia, não tem nenhuma pressão interior para mudar e não dá muito valor aos conselhos que não venham dos seus fiéis.
De que é que Trump está convencido? De que a política externa americana face à Rússia tem sido desnecessariamente hostil, e que deve haver uma inversão significativa dessa hostilidade. De que os EUA arcam sob os seus ombros os custos de proteger múltiplas nações e áreas do mundo que bem podiam cuidar da sua defesa, mesmo que isso implique adquirir uma capacidade nuclear. De que a NATO é uma organização caduca e, no limite, desnecessária. De que as sucessivas intervenções americanas e europeias no Iraque, na Líbia, na Síria foram monumentais desastres, pouco preparados e pensados, sem medir as consequências, eliminando personagens como Khadafi, ou Saddam, e tentando eliminar Assad, que, mesmo que sejam bad boys, garantiam e garantem uma estabilidade regional cuja perturbação deu origem ao ISIS e ao caos no Iraque, na Líbia e na Síria. De que o único verdadeiro inimigo dos EUA nos dias de hoje é o ISIS, e, em menor grau, o Irão e a China, enquanto a Coreia do Norte devia ser posta na ordem pela China, com os EUA a fazer enormes pressões para que isso aconteça. Há alguns subprodutos destas “opiniões” e algumas contradições, como, por exemplo, a posição face a Cuba, mas é o que Trump pensa, e o que ele pensa é o que vai tentar fazer.
A primeira observação é que há muitas coisas em que Trump tem razão: os aliados dos EUA recusaram, de há muitos anos a esta parte, o chamado “burden sharing”, que implicava maior comparticipação em despesas que eram para a sua própria defesa; e poucas coisas têm sido mais erráticas, caóticas e inconsistentes do que a política face ao Iraque, Afeganistão e, principalmente, Líbia e Síria. A Ucrânia é outro exemplo, de uma política falhada com consequências permanentes na divisão do país e na anexação da Crimeia, que já todos tomam como adquirida.
O desastre sírio, numa guerra civil fomentada pelos americanos, franceses e ingleses, convencidos de que derrubavam Assad sem consequências, um dos raros aliados russos na região, é um dos maiores erros da política externa das potências ocidentais. Os grupos anti-Assad que apoiavam eram uma mescla perigosas de facções, e o vazio do poder na Síria e no Iraque permitiu o aparecimento do ISIS. Criaram assim uma oportunidade valiosa para os russos, que se sentiram legitimados para enviar a aviação, a marinha e tropas para apoiar Assad. Se os EUA, franceses e ingleses, se sentiam com direito, sem mandato da ONU, de participar na guerra civil síria, por que razão os russos não podiam fazer o mesmo? Não custa perceber, para usar uma analogia à Trump, que os russos vissem a tentativa de derrube de Assad, seu aliado, como o equivalente para os EUA, de haver uma guerrilha pró-russa na Ária Saudita, aliado americano.
Na prática, o que Trump fez, com aquela mistura de genuinidade, inexperiência e ignorância, a que se soma alguma intuição, foi interiorizar como suas todas as reservas e críticas russas à política americana da Administração Obama e do Departamento de Estado Clinton, e, ao fazê-lo, num contexto de clara vontade de aproximação a Putin, muda de facto a visão do mundo.
Para os russos, e para Putin, é uma oportunidade de ouro na sua política externa mais agressiva, que já tinha tido resultados na Ucrânia e na Crimeia, e no passado na Geórgia e na Tchetchénia, embora neste último caso dentro do território da Federação Russa. Os objectivos geopolíticos russos não são novos, em bom rigor datam do império czarista, foram adaptados pelos bolcheviques, em particular por Staline, e sofreram consideráveis recuos com o fim da URSS, e a aparição de um mundo unipolar. O significado da ascensão de Putin a nível interno tem muito que ver com essa retomada simbólica e real do poder russo como potência que se mede com todas as outras, a começar pelos EUA. Trump é sensível a este novo statu quo e minimiza as ambições russas, porque não quer saber das várias partes do mundo em que lhe é indiferente serem os russos a mandar. Há um claro recuo do intervencionismo americano, com o retorno do proteccionismo económico, a que se associa uma concepção punitiva das intervenções americanas a fazer, sem qualquer intenção de partilha de espaços e influências. Metem-se connosco, levam forte e feio, mas feito o castigo, as nações e os povos envolvidos que se amanhem no seu destino. Aí está uma política que deixa aos russos uma geopolítica estratégica de mais alcance e aos EUA acções de carácter táctico, tanto mais que o que interessa a Trump é que a fortaleza americana não deixe sair empregos, fábricas, recursos, e não deixe entrar inimigos, a começar pelos muçulmanos. Putin vive bem com esta política, que lhe dá mãos livres num entendimento com o “amigo” Trump na partilha de recursos, e nada mais. Putin tem uma política externa, Trump não tem, nem quer ter, e quando a tiver será pactuada com Putin.
As vítimas desta doutrina Trump-Putin, se se materializar como tudo indica, são os aliados dos EUA, a começar pelos europeus que fazem parte da NATO, mas também os asiáticos e árabes. Para os países bálticos, ou os países do antigo Pacto de Varsóvia, cuja “geografia” os coloca perigosamente perto da Rússia, o caso da Crimeia e da Ucrânia são muito preocupantes. Para o Japão ou a Coreia do Sul, Trump aponta a nuclearização, um enorme risco numa região do mundo onde há uma nação verdadeiramente perigosa, a Coreia do Norte, e a China, uma potência emergente que nunca permitirá sem retaliação as brincadeiras irresponsáveis de abandonar a política de “uma só China” reconhecendo Taiwan.
Trump tem todos os defeitos que já apontámos e aparece agora a brincar com as armas nucleares no Twitter, a doença infantil dos homens maduros, mas sabe o que quer e, acima de tudo, o que não quer. Mesmo que não faça um décimo do que ameaça fazer, basta isso para consolidar um ponto sem retorno da política mundial, e se há homem que é capaz de explorar isso, é Putin. Num certo sentido são parecidos: Putin retratado como macho russo a andar a cavalo, em cima do gelo, a mergulhar, a caçar ursos; Trump apanhando-as pela “pussy”, vivendo entre ornatos de falso ouro, e aquelas cadeiras e móveis que a gente jurava que ninguém comprava, mas compra. Só que há uma enorme diferença, Trump é habilidoso e esperto, Putin é inteligente e frio. E Putin tem um mapa por detrás, com muita história dentro.