Quando Teseu foi uma jovem negra e judia de Filadélfia
Este romance é um prodígio de invenção e liberdade artística. A erudição e mestria estilística de Fran Ross tornam o legado clássico um diálogo poderoso e empolgante com a sua contemporaneidade.
Fran Ross foi autora de um só romance, Oreo (1974), mas com ele revisitou o universo clássico que, por conhecer tão bem, pôde subverter de forma admirável. Ao fazê-lo, assinou uma obra que, à imagem dos demiurgos modernistas, boicotava os trâmites tradicionais da narrativa, pelo seu sofisticado uso da paródia, da ironia e da desagregação de princípios tidos por essenciais – verosimilhança, realismo, propriedade de estilo. A infra-estrutura em que assenta este romance nada estável (logo, nada assente) recua aos mitos áticos e ao herói máximo Teseu. Também aí se percebe a rebeldia deste romance notável. Em vez de assumir uma atitude cautelosa de reverência diante de um legado momentoso é como se Oreo, para usar uma imagem canónica, andasse com o cadáver de rastos à volta das muralhas da cidade.
É a própria autora quem incita o paralelismo. Oreo termina com uma “Chave para Leitores Apressados, Não-Classicistas, etc.” (p.271). Pouco antes, a autora explicitara o paralelo que até aí se havia subentendido – “Um dos fracassos teatrais de Samuel deve ter sido uma peça acerca de Teseu (…). É claro que as pistas se destinavam apenas a fazer Oreo pensar na lenda de Teseu.” (p.267) A mudança de nome da protagonista – Christine passa a ser conhecida como Oreo – é um dos primeiros apelos ao herói cujo nome também é mudado. Oreo cresce com os avós, como Teseu se criou, segundo Plutarco, “sob a protecção de Piteu”, seu avô (Vidas Paralelas: Teseu e Rómulo, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, 2008). As sandálias compradas pela protagonista descendem das que Teseu teve de calçar para ser reconhecido pelo pai, Egeu (obviamente, o pai de Oreo “é” Egeu). Como a própria Ross explica, a bengala de Oreo não constitui símbolo fálico; o que não nos diz, mas podemos tentar adivinhar, é que o objecto, usado por Oreo como arma, duplica quase na perfeição a clava de Teseu. De resto, Fran Ross lista muitas das ligações clássicas (não todas, tal como o “Glossário” é tantalizante, de tão lacunar). O Cineteatro Apollo, um dos locais de aventura de Oreo, sem grande surpresa, é o Templo de Apolo Delfínio; a personagem de Adriana é Ariadne; Kirk replica Cércion, inimigo de Teseu e monstruoso oponente da heroína de Oreo (numa violação gizada como cruel punição pela sua húbris).
A bolacha que intitula o romance foi escolha da avó de Christine. A icónica marca, favorita dos Americanos, representa a jovem Oreo, no açúcar dos seus dentes de leite que se conjuga com o tom da sua pele. O jogo do branco com o negro tem a concisão de um emblema: as duas culturas que vivem na protagonista, negra e judaica.
Oreo é um romance de demanda. A protagonista procura o pai desaparecido. Ainda antes da secção mais claramente aventurosa, que a leva de Filadélfia ao perigo das ruas de Nova Iorque, Oreo revela um carácter extraordinário. À argúcia, inteligência e sofisticação cultural, alia a intrepidez de um herói grego. Oreo é uma jovem negra e judia de Filadélfia. A união dos pais, um judeu e uma negra, é causa remota da sua busca. Sob pressão familiar, a relação dera em separação, na infância da protagonista. Educada sem os pais, Oreo faz-se uma jovem independente, confiante e com a altivez própria da idade e de quem extravasa qualquer limite. O conflito entre a raiz negra e judaica reflecte-se nas vastas digressões sobre o “póquer genético da cor da pele” (p.13), mercê do qual sabemos, por exemplo, que “[n]ão existe ‘preto retinto’. Só os brancos usam este termo.” (id.); mas também na prodigalidade de termos iídiche e hebraicos (decifrados propositadamente pela rama no caricato e nada elucidativo glossário que fecha o romance). Essa tensão propaga-se a todo o livro, com brancos que se crêem negros e negros que lutam para impor a sua teoria evolucionista, em que a carapinha é o cume da escalada humana. Nesta como em tantas vertentes, o trabalho de tradução de Paulo Faria merece louvor inequívoco. As soluções encontradas, a atenção à musicalidade ou à dissonância, os pormenores a que atenta o seu labor, são raros e preciosos. Seria ocioso listar exemplos, além de injusto, porque Oreo, no seu todo, não poderia prescindir de um tradutor cuja capacidade está à prova (e passa com distinção) em quase todos os parágrafos do romance.
Um dos temas de Oreo é a linguagem. As personagens estão em permanente esforço para compreenderem labirintos idiomáticos próprios e alheios. E há ainda essa espécie de esperanto que Oreo cria com o irmão – “calhasno” é o insulto preferido para opositores e até para o irmão. Inflexões, códigos secretos, sentidos ocultos desfilam a cada passo. A protagonista de Oreo “partilhava o amor da mãe pelas palavras” (p.55). Um apreço que assoma, com esplendor inusual, no seu percurso de aluna de professores particulares, com um dos quais alimenta lautas discussões etimológicas tão fantasiosas quanto densas. O romance é percorrido por uma espécie de volúpia do verbo – “Havia imensas palavras espalhadas pelo chão. Palavras e ritmos. Que palavra era aquela, ao canto, enroscada em posição fetal? E este som umbilical, que intervenção cesariana o separara a destempo da sua raiz?” (p.181). Nem mesmo na iminência de ser violada, Oreo consegue resistir ao encanto das palavras. É tal a sua obsessão com o sentido e a validade de que são capazes, a aparência que tomam – “Ao cabo de escassos minutos, despira-se por completo, à parte a mezuza, as sandálias e o soutien (que ela sempre achara que se devia chamar porta-mamas, por ser uma designação bem mais inequívoca, que não se prestava a confusões).” (p.207)
É como se essa obsessão fosse sempre ganhando maior força e alastrasse à globalidade do livro. A intimidade com as matérias condiciona um estilo de rapidez desafiante, uma plasticidade de extrema precisão, que faz da ironia não tanto um instrumento do riso quanto uma fórmula de interpelação do leitor e outras instituições, que nunca podem ficar sentadas no sossego de nenhuma certeza – “Durante o tempo que o leitor demorou a ler tudo isto, Oreo correu até junto do equipamento de campismo dos Does, pegou numa pegazita em forma de luvita sem dedos, enfiou-a no indicador e no dedo médio, lançou-se sobre a lata e cortou-lhe o pio in flagrante.” (p.156). A agressividade do óbvio cria contrapontos permanentes com a graça da surpresa, numa técnica de falsa ingenuidade, quer de processos, quer de conteúdos. Sirvam de ilustração a velocidade com que se alteram os planos da narrativa: desde uma captação imediata de tudo aquilo com que a protagonista contacta até ao que lhe está mais distante; do mais concreto ao abstracto (no metropolitano, Oreo concebe as mais delirantes equações mentais, forma e destrói padrões, cria a sua própria matemática das coisas e dos seres). A inventividade, essa, acaba por ser uma consequência necessária. Foi a forma que a autora encontrou para lidar com a matéria caleidoscópica do que pretendia recriar. Não sintetizar para maior clareza, mas descrever, analítica, detidamente, para que a precisão fosse um clarão de intensidade máxima, em vez de um foco de luz estagnada.
É um mundo pulsante, que parece clamar por uma escrita que se empolgue a cantá-lo, apesar da impossibilidade de fixar a sua corrente indomável. O encontro, numa mesma frase, de Bach e de Lutero, não depende de um impulso de erudição – ou de misantropia, como diria Pound –, mas responde às solicitações de uma realidade tão vasta quanto vaga. Na perspectiva diferida de uma jovem, tudo é desmesurado e está por conhecer. É por isso que formulações como “um pedaço esquisito de lenha” são muito menos forças de uma estratégia de desarticulação do que o modo adequado que a escrita obteve para se apropriar do contexto juvenil e do desconhecido que diante dele sempre se abre. A estranheza, por conseguinte, não é propriamente um pressuposto estilístico, mas a derivação de uma lógica interna.