Renzi, o "sucateiro"
Do homem considerado em 2014 pela revista norte-americana Foreign Policy como um dos 100 mais influentes “pensadores globais”, o mais profundo que se lhe conhece são citações de Baden-Powell e exemplos do seu passado de escuteiro com que preenche os seus discursos.
Nunca entendi bem este amor especial que por Matteo Renzi tinham tantos comentadores políticos da nossa praça. Sobretudo desde que o quiseram apresentar como “barreira” contra o populismo em Itália. É certo que o disparate e o simplismo se tornaram norma desde que entrámos nesta fase em que os liberais de todas as cores se empolgam na luta contra o seu novo adversário, o “populismo”, nova versão desse outro conceito abusadíssimo, o “totalitarismo”, manipulado de forma a nele caberem todos os inimigos e adversários, por menos que tenham a ver uns com os outros. Cada época, já sabemos, tem os seus moinhos de vento: não nos admiremos que, de tão pouco lucidamente definidos os perigos com que nos deparamos, eles acabem mesmo por se concretizar...
Renzi gosta(va) de se auto-intitular o “sucateiro” (“rottamatore”) da “casta política” italiana, mas para muitos nunca passou de um espertalhão que, no campo do chamado centro-esquerda italiano, soube reproduzir e atualizar o modelo Berlusconi de intervenção política: o culto da “liderança” que queria mandar para a “sucata” (a expressão é de Renzi) a velha tradição dos ex-comunistas e dos católicos (mais ou menos) progressistas que se fundiram no Partido Democrático (PD); a encenação do “carisma” feito da mesma arrogância e da mesma ousadia manipulatória de que se acusa os populistas; a retórica do reformador que, à moda de Sócrates, se diz atacado por todos os “privilegiados” mesmo que eles não sejam mais do que trabalhadores da escola e da saúde públicas ou assalariados com contratos efetivos.
Do homem considerado em 2014 pela revista norte-americana Foreign Policy como um dos 100 mais influentes “pensadores globais”, o mais profundo que se lhe conhece são citações de Baden-Powell e exemplos do seu passado de escuteiro com que preenche os seus discursos. Quem o acha(va) o reformador que salvaria a Itália do populismo da extrema-direita racista e do Movimento 5 Estrelas deveria ter prestado atenção às intervenções de Renzi, em que, mestre da telepolítica como Silvio Berlusconi, se comportava como um comediante de start-up.
Lembram-se do slogan de Trump “Make America Great Again”? O mantra de Renzi era o de “a Itália que volta a ser a Itália”, “a Itália locomotiva da Europa” - tudo coisas cheias de significado...
O homem que quis impor uma reforma constitucional em nome da “estabilidade política” chegou a primeiro-ministro depois de conspirar dentro do seu partido, primeiro contra o líder que o tinha derrotado nas eleições primárias do PD para ser candidato às legislativas de 2013, e que Renzi conseguiu impedir de formar governo; depois contra Enrico Letta, obrigando-o a ceder-lhe o lugar ao fim de dez meses de governo sem passar por novas eleições.
Entre as suas reformas “radicais” (aqui o adjetivo já é elogiado por quem detesta a esquerda “radical”...) está o simbólico Jobs Act, reforma laboral aprovada depois de meses de contestação social e da maior manifestação sindical em décadas (1,5 milhões de pessoas em Roma em outubro de 2014, seguida de greve geral a 12 de dezembro), convocada pelos mesmos sindicatos moderados com cujo apoio o PD sempre contara.
Renzi, como Valls em França, conseguiu fazer o que nem Berlusconi (ou Sarkozy) conseguira: eliminar a interdição do despedimento sem justa causa!
Com a pobreza a crescer, uma dívida pública superior à portuguesa, as típicas aventuras de salvação de bancos (incluindo um de cuja falência fora responsável, entre outros, o pai da sua ministra favorita, Maria Elena Boschi) e um desemprego que se manteve inalterado acima dos 12%, Renzi tirou da cartola a proposta de uma reforma constitucional cuja discussão ocupou a Itália durante os últimos dois anos. Armado em De Gaulle, garantiu que se demitiria se fosse derrotado. E foi: ao contrário do “Brexit”, contra ele votaram 81% dos jovens, enquanto 51% dos maiores de 55 anos votaram Sim (Corriere della Sera, 6.12.2016); a favor (como a favor do “Brexit”), os bairros mais ricos de Milão e Roma, enquanto as regiões mais pobres do país votaram maciçamente contra.
Se é com gente assim que se julga travar o avanço da extrema-direita, estamos falados!