Admirável Língua Nova (Parte I)
À pergunta que muitos escreventes da língua portuguesa não sabem responder “Como se escreve esta palavra com o Acordo?”, temos de acrescentar outra: “Que significa isto que está aqui escrito com o Acordo?”
Proponho ao leitor o seguinte exercício. Escreva “corréu” num papel e pergunte a pessoas amigas e conhecidas o que significa. Insista com quem disser que não sabe. Assevere que está a recolher uma amostra que garante o anonimato das respostas. Peça ao seu interlocutor que procure adivinhar, suplique-lhe que tente imaginar, implore-lhe que diga o que lhe parece. A que lhe soa tal vocábulo, leitor? Partilho três respostas das muitas que respiguei: “Sei lá!, algum peixe?”, “Deve ser calão”, “Qualquer coisa eléctrica ou mecânica”. Alvitro que obterá respostas ainda mais desacertadas se escrever “corréus” – nome de povo?, de etnia?, de alguma das novas seitas que pululam por aí? E palpites crescentemente imaginativos se escrever “corré” e “corrés”!
Caro leitor que não conhecia a palavra, trata-se de quem é réu ou ré com outro ou com outra no mesmo crime. Ajudará talvez se escrever as palavras não adoptando o Acordo. Vejamos: “co-réu”, “co-réus”, “co-ré”, “co-rés”. Pode experimentar o exercício com “cocomandante” [não é o mandante do coco, é o “co-comandante”], “cofator” [co-factor], “cossecante” [co-secante], “perentoriamente” e “perentório” [“peremptoriamente” e “peremptório”], “rutura” [“ruptura”], “espetral” e “espetro” [“espectral”, relativo a “espectro” – sublinhe-se que o Houaiss (edição de 2011) nem sequer admite outras grafias além de “espetro” e “espetral”, como não admite outras grafias além de “espetador” e “espetáculo”], “cetro” [alguns dicionários aceitam dupla grafia para “ceptro”, outros – como o Priberam e o Houaiss, por exemplo – acolhem apenas “cetro”; sim, leitor, com o Acordo, cada dicionário tem o seu próprio Acordo!], “suntuoso” e “suntuosidade” [vocábulos evidentemente mais aparentados com “untuoso” e “untuosidade” do que com fausto, luxo, magnificência, esplendor, mas que são grafias consagradas em dicionários com o Acordo, como o Houaiss, juntamente com “sumptuoso” e “sumptuosidade”]. Saiba ainda que “conarrar”, “conadador” (não é nenhuma espécie de dador) e “arquitetas” não são vocábulos maliciosos – são apenas as versões acordizadas de “co-narrar”, “co-nadador” e “arquitectas”. À pergunta que muitos escreventes da língua portuguesa não sabem responder “Como se escreve esta palavra com o Acordo?”, temos de acrescentar outra: “Que significa isto que está aqui escrito com o Acordo?” E, de ora em diante, se o seu filho consultar fontes da língua com o Acordo – digamos, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora (edição de Dezembro de 2015), o Dicionário de Português-Inglês (quarta edição) da mesma editora ou o Portal da Língua Portuguesa –, não se espante se ele escrever “interrutor”.
Consultando o dicionário em linha da Porto Editora, temos:
interrutor
in.ter.ru.tor
ĩtəʀuˈtor
nome masculino
1. aquele ou aquilo que interrompe
2. aparelho ou pequeno manípulo que permite abrir ou fechar um circuito elétrico
adjetivo
que interrompe.
Consultando este dicionário, verificará que há “lácteo” e “laticínio”. (Citando uma publicação de 27/10 da página Tradutores contra o Acordo Ortográfico, agora “Os produtos lácteos são laticínios”.) Observará que os “epiléticos” sofrem de “epilepsia” em crises “epiléticas” e que “epileptiforme” é aquilo que é semelhante aos ataques “epiléticos”. Confuso? Nada. Para ajudar à missa, tem ainda “epileptoide”, que mantém o pê, mas perde o acento no ó, porque as palavras graves que têm como sílaba tónica o ditongo “oi” perdem o acento (passamos a ter, entre outras, “boia”, “joia”, “jiboia”, “heroico”, “paranoico”). Comprovará ainda na sua consulta que os “catos” são da família das “Cactáceas”; que “ortóptico” é aquilo que corrige problemas “óticos”; que há “bissetrizes” e “trissectrizes”; que “convetor” é um calorífero que transmite o calor por “convecção” num processo “convectivo”; que “infanto-juvenil” perde o hífen e se aglutina em “infantojuvenil”, mas já “materno-infantil” fica como estava. E, se ainda não sabia, ficará a saber que “Egito” é o país em que vivem e viveram os “Egípcios” e que aquele que estuda a antiga civilização do “Egito” se dedica à “egiptologia”, ou seja, é “egiptólogo” quem estuda o “Egito”. Egiptologia é formada, diz-nos tal dicionário, “de Egipto+-logia”. Mas o país não é o Egito? Aquele que em inglês é Egypt?; em alemão, Ägypten?; em francês, Égypte?; em castelhano, Egipto; em neerlandês, Egypte?
“Nós falamos ontem.” A frase anterior tem algum erro à luz do dito Acordo? Nenhum. Podemos escrever “amamos” “falamos”, “sonhamos”, “pensamos”, “lavamos”, “imaginamos”, “fabricamos” e tantos outros, indicando a primeira pessoa do plural no pretérito perfeito. Dirá o leitor mais contumaz: “E se não estiver lá “ontem” na frase?” Pode escrever também sem o acento, que não erra. Vá o leitor ao Portal da Língua Portuguesa e veja a conjugação de verbos. Ou leia a Base IX, Ponto 4, do Acordo. Quem não adopta o Acordo está, coitado!, obrigado a escrever “decepcionámos” no pretérito perfeito. Mas aquele que acolheu o Acordo tem o cardápio multiplicado por quatro: “decepcionámos”, mas também “dececionámos”, “decepcionamos” e “dececionamos”. E quanto jeito dá este casamento entre a norma do Acordo – ilógica, fragílima e nebulosa, da qual resultam tantas interpretações – e o espírito de um tempo em que a comunicação escrita é feita grandemente por via digital, os equipamentos tecnológicos são tão avessos à acentuação e as novas gerações engolem progressivamente mais sílabas em construções frásicas retorcidas em que a palavra “tipo” emerge a cada cinco segundos. Maravilha fatal da nossa idade!
Pois bem, caro leitor, liberte-se (mas só um pouco, como verá adiante) do inferno da acentuação em palavras que estavam à distância de um acento para serem homógrafas. Se ler “No regresso para à entrada e acende um cigarro” (passo de um livro transcrito no Linguagista), note que aquele “para” pode significar o antigo “pára”. Se ler, por exemplo, “Para onde?”, adivinhe, se conseguir, se se trata do verbo parar ou da preposição. Pode até dar-se o caso de ler “Para, para me ouvires, por favor” e ser a transcrição da fala de um gago – ou não. E lembre-se do significado original da expressão agora modificada: “Alto e para o baile!” O leitor torce o nariz? Não devia, o Acordo decreta que “tratando-se de pares cujos elementos pertencem a classes gramaticais diferentes, o contexto sintáctico [o Acordo não segue o Acordo?] permite distinguir claramente tais homógrafas”. Se ler “Pelo sim, pelo não”, tanto pode expressar o bordão como a ideia de alguém que anda à cata de determinadas pilosidades. Deixa de haver “pêra” [homografia entendida à luz da preposição arcaica “pera”], “pêro” [homografia decretada por causa da conjunção arcaica “pero”] e “pólo” – passa a haver “pera”, “pero” e “polo”. Mas em “pôr” e “pôde” – apesar de haver “por” e “pode” – já tem de haver! Por outro lado, “crêem”, “descrêem”, “vêem”, “prevêem”, “revêem”, “lêem”, “relêem”, “treslêem”, “desdêem”, “redêem” e “dêem” perdem o acento. “Dêem” passa a escrever-se, portanto, “deem”, mas em “dêmos” (diferente de “demos”, pretérito perfeito)… o acento é… facultativo! (Base IX, Ponto 6, Alínea b, do Acordo.) Mas o exclusivamente acordista Portal da Língua Portuguesa, uma excelente ferramenta, só regista “dêmos” na primeira pessoa do plural do presente do conjuntivo?! O caos? Entende que sim, leitor? Se assim pensa, o leitor é anacrónico! O Acordo veio… – os seus paladinos não se cansavam de nos sossegar –… para “simplificar”! Sucede que esses cavaleiros do entusiasmo, falhados todos os propósitos do Acordo (da simplificação, da unificação, da melhor compreensão mútua entre os povos), são agora cada vez menos e todos eles críticos de um ou outro despautério do Acordo. Sucede ainda que, depois do soçobro da aplicação do Acordo, esses poucos que não querem perder totalmente a face falam agora muito mais timidamente, limitando-se a tentar pastorear a salgalhada desta aberração.
É inútil e desgastante procurar a razão no irracional, a lógica no ilógico, a excelência na mediocridade. Por que raio (não direi razão, para não iludir o leitor) “cor-de-rosa” se escreve com hífenes, mas “cor de laranja” sem? Por que insondável desígnio “manda-chuva” se passa a escrever “mandachuva” (cruz-credo!), mas “para-chuva” [perde o acento] e “guarda-chuva” preservam o hífen? E porque escrevemos agora “para-chuva”, “para-choques”, “para-brisas” (e “limpa-para-brisas”), “para-vento”, “para-fogo, “para-sol”, “para-raios”, mas “paraquedas” [sem Acordo: “pára-quedas”]?! O Acordo não explica o inexplicável.
Autor do Dicionário de Erros Frequentes da Língua e editor do livro Anti-Tech Revolution: Why and How